A Iniciativa Liberal já apresentou no Parlamento o projeto de lei para revogar uma parte da Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital. Está em causa o artigo sexto, que na opinião das vozes mais críticas, reinstala a censura em Portugal, trazendo à memória os métodos salazaristas para impor no espaço público uma verdade oficial.
João Cotrim de Figueiredo defende que em nome do combate à desinformação, se vai criar um Ministério da Verdade. ”Fica aqui escrito que uma entidade qualquer nos vai dizer coisas como o que é fidedigno, o que são imagens manipuladas, quando hoje praticamente não há imagens que não tenham uma qualquer forma de manipulação”, argumenta, para perguntar de seguida:” Quem define o que é ameaça aos processos políticos democráticos, o que é intenção de enganar o público? Quem é que define? É o Ministério da Verdade?”
O diploma atribui à Entidade Reguladora para a Comunicação Social poderes para julgar da falsidade de textos, vídeos e áudios que sejam publicados não apenas pelos órgãos de informação tradicionais. Mas também nas redes sociais e plataformas digitais, desde que lhe seja apresentada queixa. O deputado socialista José Magalhães, um dos autores da Carta, reconhece que isso representa um alargamento das competências da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. E que portanto os seus estatutos terão de ser revistos.
“O que é preciso definir”, diz José Magalhães ”é se o legislador faz algum golpe num princípio sagrado, alterando a lei que criou a ERC e definiu as suas competências. E a resposta é não. Porque o legislador é livre de o fazer. Em segundo lugar, já o fizemos antes. Quando em 2020, transpusemos a diretiva sobre serviços de comunicação social audiovisual, demos à ERC competências para acompanhar as chamadas plataformas de partilha de vídeo, Youtube, Facebook Watch, etc., etc. E ninguém começou a gritar: 'Ai meu Deus, que vem aí a censura!'”.
O deputado socialista, pai da Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital, argumenta que o regulador da Comunicação Social tem de estar a par do seu tempo. ”Se a ERC não estende o seu olhar para além do campo dos media que estão a fenecer e que estão aliás a ser corroídos pelos ataques do mundo selvagem, não regulado, então para que é que serve? Porque esse Mundo está a ser reduzido e o outro Mundo, o desregulado, está a crescer. Portanto se não servisse para isso, a ERC servia efetivamente para muito pouco”.
Uma lei "redundante", diz Miguel Prata Roque
A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital entra em vigor no dia 17 de Julho. Mas o professor de Direito Público da FDL Miguel Prata Roque acha que será uma lei inconsequente. “Eu interpreto esta intervenção do legislador, infelizmente, apenas como uma declaração de intenções. E confesso que, tal como o professor Melo Alexandrino, também entendo que já há mecanismos na lei que permitem salvaguardar algumas das preocupações da Carta”.
No parecer que foi publicado no site da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, o constitucionalista José Melo Alexandrino considera que a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital “é redundante, quer relativamente aos direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, quer relativamente aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, quer relativamente aos direitos humanos fundamentais reconhecidos no âmbito da União Europeia, acrescentando sim insegurança jurídica, como se reconheceu no parecer do Conselho Superior do Ministério Público”.
Considerando-a redundante e inconsequente, Miguel Prata Roque defende que a Carta Portuguesa acabará por não ter aplicação prática. E exemplifica com o direito ao esquecimento, também consagrado no texto. “Imagine que numa plataforma eletrónica, como o Facebook, o Instagram ou o Twitter, é difundida uma informação falsa que prejudica a reserva da vida privada ou o bom nome de alguém. Há um direito teórico ao esquecimento. Esta lei diz que o Estado deve contribuir para auxiliar essa defesa ao direito ao esquecimento. Mas que mecanismos são esses? Pode a ERC emitir uma decisão que seja vinculativa para entidades que atuam fora do território português?”.
Quanto estamos a falar de uma realidade que não tem fronteiras como a internet,” só a regulação transnacional pode ter eficácia”, defende o antigo assessor do Tribunal Constitucional Miguel Prata Roque.
A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital tenta dar aplicação ao “Plano Europeu Contra a Desinformação”, que é por enquanto uma mera recomendação da Comissão Europeia. O líder da Iniciativa Liberal diz no entanto que a lei portuguesa ”nem sequer segue as orientações europeias, porque o plano europeu é baseado na perceção de uma ameaça externa, que é real, e que são tentativas de interferência de países como a Rússia, em processos eleitorais, e a carta portuguesa tem um foco exclusivamente interno”. João Cotrim de Figueiredo aponta ainda outra diferença: ”o plano europeu exclui, da definição de desinformação, comentários e opiniões assumidamente partidários, ao contrário do que acontece na Carta Portuguesa, que apenas exclui do conceito de desinformação, os meros erros na comunicação de informações e as sátiras e paródias”.
Com tantas críticas, qual o sentido da abstenção da Iniciativa Liberal, quando o diploma foi votado? O líder do IL e seu único deputado admite que foi uma opção errada. "Tínhamos de facto reservas já nessa altura em relação ao artigo 6 º(Direito à Proteção Contra a Desinformação). E eu já tive a oportunidade de o reconhecer publicamente, devíamos ter levado mais longe essas reservas, essas dúvidas, mantendo o voto contra que tivemos quando o projeto foi votado na generalidade. E porque é que não o fizemos? Porque este artigo é de facto um artigo que nos induz em erro.”
Divergências há muitas no combate à desinformação
A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital foi aprovada pela AR no dia 8 de abril, sem votos contra, de qualquer bancada. Ao Presidente da República também não suscitou nem dúvidas políticas nem constitucionais, e foi por isso promulgada um mês depois. A polémica surgiu na opinião pública, já depois de concluído o processo legislativo, com vários comentadores a alertarem para o risco de o diploma por em causa a liberdade de expressão e a Iniciativa Liberal anunciou entretanto que quer revogar a norma relativa à proteção contra a desinformação.
Outro ponto controverso da nova lei diz respeito ao facto de prever que "o Estado apoie a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social registados na ERC e incentive a atribuição de selos de qualidade por entidades dotadas de utilidade pública”, nos termos da legislação aplicável às entidades de caracter cultural. O projeto de lei regulamentar da Carta, já entregue pelo PS na AR, prevê que só possam beneficiar de apoio as estruturas que não sejam participadas por pessoas coletivas públicas, as que exerçam atividade há pelo menos três anos e se encontrem regularmente constituídas, regendo-se por estatutos elaborados em conformidade com a lei.
“Os selos de qualidade para quem faz verificação de factos é apenas para os Órgãos de Informação devidamente registados pela ERC”, garante José Magalhães, "não é para órgãos fascistoides como o Notícias Viriato”.
Entre as entidades que poderão atribuir os selos de qualidade “a sítios informativos na internet” estão a Associação Portuguesa de Imprensa, Associação de Imprensa de Inspiração Cristã, a Plataforma dos Media Privados, a Associação Portuguesa de Radiodifusão, a Associação de Rádios de Inspiração Cristã, a Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação Social e o Instituto Civil da Autodisciplina da Comunicação Comercial.
A Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital tem 21 artigos e garante direitos como o direito ao esquecimento, à proteção contra a glocalização abusiva ou ainda o direito de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital.
A lei determina que o Estado deve promover a criação de uma tarifa social de acesso à Internet para clientes economicamente vulneráveis, a existência de pontos de acesso gratuitos em espaços públicos como bibliotecas, jardins e serviços públicos.
Ao Estado é também pedido que garanta em todo o território nacional conectividade de qualidade em banda larga e a preço acessível.