Ao assumir o trono, Carlos III estará inevitavelmente sujeito às comparações com a sua mãe cujo reinado de sete décadas deixou um modelo passível de ser adotado por um confesso admirador da sua antecessora.
“O filho terá que provar o seu próprio mérito. Não pode viver eternamente dos juros da reputação da mãe”, avisa Eugénio Lisboa, antigo conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Londres.
Durante 17 anos, o ensaísta observou de perto a realidade britânica e a forma como Isabel II se relacionou com o povo e com a elite política do Reino Unido. Carlos III começa agora o seu reinado, mas assistiu à magistratura da Rainha que atravessou muitas crises políticas e sociais.
“A Rainha teve uma serenidade política que conseguiu amaciar muitas crises. O seu grande poder residiu numa imensa popularidade. As pessoas sabiam que ela era empenhada, que estudava bem os dossiers. Há um compromisso da coroa britânica com o poder executivo. No dia em que quiser usar todos os poderes que ainda tem, a monarquia estará obviamente em risco”, alerta o crítico literário, que aponta apenas uma “escorregadela” da monarca, na gestão da morte de Diana “mas que depressa se pacificou”.
A relação entre o Palácio de Buckingham e Downing Street ajudou então em favor da Rainha, sustenta Eugénio Lisboa. “Com a ajuda de Blair, a Rainha consertou rapidamente a situação, até porque o fundo de popularidade dela era muito antigo e grande”, comenta o ensaísta.
O coração do novo Rei
Se a Rainha alterou o seu discurso nessa crise, conseguirá o seu filho seguir as suas pisadas quando for necessário?
Eugénio Lisboa recorda os vários encontros com Carlos e não ignora o lado “bastante frontal” que herdou também do pai, o Príncipe Filipe.
“Ele vai ter que ser mais discreto. Carlos tem o coração ‘do lado certo’ e preocupa-se com os outros. Isso vai ser facilmente percebido pela sociedade inglesa e rapidamente será um rei popular”, alvitra Eugénio Lisboa.
Para Luís Coimbra, monárquico e engenheiro formado no Reino Unido, Carlos III deverá ser comedido face ao percurso anterior como Príncipe de Gales, onde o seu ativismo ambiental foi uma pedra de toque da sua intervenção pública.
“O mundo está cada vez mais a ler nas entrelinhas do que é dito nos mais diversos quadrantes. Uma das virtudes de Isabel II foi saber dar sinais, bem refletidos e ponderados, que não a obrigavam a falar muito” , analisa o especialista em aeronáutica.
Os estilhaços do Brexit
Carlos III assume a chefia do Estado quando o Reino Unido tenta navegar pelos impactos económicos do Brexit, da inflação e da guerra.
Luís Coimbra, que viveu 7 anos em Inglaterra, admite que o Brexit até poderá vir a ser revertido e acredita que a Rainha “não terá visto muito bem “a deriva que levou à saída da União Europeia.
Com memória da Segunda Guerra Mundial, tendo atravessado toda a Guerra Fria, a Rainha Isabel II “pareceu ter estado sempre no apoio a essa opção europeia do Reino Unido até ao final, embora sempre respeitando a decisão do eleitorado britânico”. A opinião é de António Goucha Soares, professor do Instituto Superior de Economia e Gestão. Este analista de assuntos europeus defende que ainda é cedo para fazer uma avaliação das vantagens e desvantagens do Brexit.
Escócia, a próxima dor de cabeça
No entanto, noutro plano, Goucha Soares acredita que as pretensões europeístas e nacionalistas na Escócia vão ser a primeira grande dor de cabeça no reinado de Carlos III.
“Esta mudança na Coroa pode proporcionar algum ânimo nas posições separatistas”, afirma Goucha Soares, para quem também a União Europeia, através da dinâmica da “Europa das Regiões “, acabou por ser uma “incubadora de fenómenos de exacerbação de regionalismos de conteúdo nacional” como a Escócia, a Catalunha, a Flandres e até a Lombardia, reclamando a separação dos seus países.
Goucha Soares sublinha que Tony Blair tentou acomodar esse crescendo de identidade regional com tendências separatistas através de uma reforma constitucional para devolver às nações do Reino Unido um conjunto mais alargado de poderes e competências que eram exercidos pelo Parlamento em Westminster. O tiro sairia pela culatra a Blair, sustenta o professor do ISEG.
Por seu lado, Eugénio Lisboa diz-se convencido de que a independência da Escócia “é uma questão de tempo” dada a determinação em fazerem parte da União Europeia.
“O desejo dos escoceses se separarem já era muito grande antes do Brexit. As feridas do passado da Escócia são muito graves. O comportamento dos ingleses face aos escoceses não é uma história benigna”, argumenta o antigo adido cultural em Londres.
O facto de Isabel II ter acabado os seus dias em Balmoral, na Escócia, continua a ter significado político para muitos analistas. O monárquico Luis Coimbra está convicto de que a separação da Escócia não vai ser fácil devido à ligação da Rainha. “A Irlanda é diferente porque tem uma tradição republicana”, ressalva o antigo dirigente do PPM.
Que moeda para uma nova Escócia?
Uma saída da Escócia do Reino Unido não será simples e muito menos será a entrada na União Europeia, defende António Goucha Soares, argumentando com decisões como a escolha da moeda para os escoceses.
“Se a Escócia sair do Reino Unido vai ter que ter uma unidade monetária própria. Isso é um corte em relação à estabilidade conferida pela libra esterlina e obrigaria a aderir ao Euro, que é uma moeda que cria problemas sérios para os que o adotam”, adverte o professor do ISEG.
A conjuntura europeia pode também fazer alguma diferença neste processo, acrescenta Goucha Soares, nomeadamente pelo impacto das eleições legislativas em Itália.
“Um novo poder populista ajuda a abrir um período de tensões ao nível da União Europeia. Uma situação dessas contrabalançará o pendor populista na Escócia em favor da saída do Reino Unido que teria que ser aceite (longe de adquirido) e depois uma entrada na UE”, remata o especialista em assuntos europeus.