“O isolamento para mim não é problema, porque isso é para mim o meu estado normal [risos]”, confessa Frederico Lourenço numa entrevista telefónica à Renascença. O escritor e ensaísta que tem vindo a traduzir a Bíblia a partir do grego tem usado as redes sociais para, em tempo de estado de emergência, dar aulas de latim pela internet. “A grande surpresa tem sido a adesão. A página tem neste momento 11 mil e 100 seguidores”.
Já lá vão mais de 10 dias desde que começou as aulas virtuais de latim. Frederico Lourenço não consegue deixar de fazer um paralelismo: “Na Universidade de Coimbra abrimos para o primeiro ano da Licenciatura em Estudos Clássicos, as vagas que o Governo nos permite, que são 20 lugares. Temos sempre 20 pessoas numa aula de latim. Agora estar a dar aulas de latim para milhares de pessoas é uma situação nova e extramente estimulante.”
“Não esquecemos a importância que o latim tem nas nossas vidas, como falantes de português”, sublinha este professor universitário que mantém a atividade letiva à distância em tempo de confinamento.
Aos novos alunos de latim vai dando textos da Bíblia, Santo Agostinho e Virgílio. Lourenço refere que “há autores que podemos ler em latim que são extremamente acessíveis e que têm uma beleza estética extraordinária”.
As aulas de latim não foram, para Frederico Lourenço, um momento para matar o tempo que este isolamento profilático impõe. O autor defende que “temos de aproveitar todas as oportunidades na vida para fazer qualquer coisa da nossa consciência e de nos desenvolvermos”, porque "é essa a finalidade da vida humana, é o desenvolvimento interior”.
Há respostas na Bíblia para tudo, também para o atual momento
“A fase em que estamos agora é muito desafiante. Leva-nos a questionar muitas coisas. Aquilo que podemos todos pensar é que há coisas que têm valor e não é um valor dependente das circunstâncias”, explica Frederico Lourenço sobre o momento que o mundo, e em particular Portugal vive.
Nesta entrevista à Renascença, o tradutor da Bíblia, editada pela Quetzal, diz que estamos numa altura “em que o ser humano é posto à prova”.
No entender de Frederico Lourenço, “a resposta que os seres humanos e os governos dão e o grau de empatia que possamos ter com as situações terríveis e humanas que emergem desta situação, é um exame que o destino ou Deus nos dão”.
O ensaísta considera que estamos a ser “postos à prova para mostrarmos qual é a nossa melhor natureza”. É aqui que Frederico Lourenço deixa um alerta: “se optarmos por abandonar as pessoas, por não prestar auxílio ou deixar que as pessoas simplesmente morram sem qualquer tipo de ajuda, isso é extremamente negativo e é um voto de desconfiança no ser humano”.
Numa perspetiva esperançosa, Frederico Lourenço diz que, “de um modo geral”, tem havido uma boa resposta perante o atual quadro de pandemia. No seu entender, em Portugal devemos “todos os elogios ao Serviço Nacional de Saúde, aos médicos e enfermeiros e a todas as pessoas que estão nos hospitais”. Lourenço diz que têm sido “fantásticos”.
Covid-19, castigo divino?
Há dias, Frederico Lourenço usou a sua página de Facebook para reagir aos que considera “que têm uma visão mais fanática da religião”.
O tradutor mostra a sua discordância para com “aqueles que aproveitam estas situações para interpretar a situação como um castigo de Deus”.
Frederico Lourenço pega nas palavras de Jesus para explicar a sua discordância. “Citei uma frase muito célebre de Jesus, do Evangelho de João, quando os discípulos lhe perguntam relativamente a um doente, se o doente tinha pecado ou se, porque os seus pais tinham pecado, ele estava a sofrer a consequência do pecado dos pais? Jesus responde que nem o doente pecou, nem os pais pecaram, ou seja, não é um castigo de Deus”, explica.
O académico conclui que “Deus não está a castigar as pessoas, quando estão doentes. É preciso dissociar essa ideia” em tempo de pandemia de coronavírus.
Afastando a sugestão de uma maldição divina, Frederico Lourenço acrescenta que “nas palavras de Jesus encontramos sempre mil caminhos maravilhosos para encontrar sentido para a vida” e, por isso, lamenta “alguns movimentos cristãos mais fanáticos”, que diz existirem sobretudo fora de Portugal, e que estão a aproveitar “estas situações para espalhar esse tipo de terror psicológico entre as pessoas”. A ideia que “Deus está a castigar a Humanidade? Acho que isso não corresponde à realidade de Deus”.