Sou contra o aborto. O aborto não é um direito, não é um “cuidado médico”, como agora se diz. Remover um feto não é como remover um tumor ou arrancar um dente. Remover um tumor é remover uma doença, remover um feto é matar uma vida humana que iria nascer.
O “não, porém, não me pode cegar. Não posso reduzir a realidade ao tema do aborto, é como olhar para o mundo através de um único buraco da fechadura.
O aborto é uma situação trágica, isto é, estamos perante o choque entre dois direitos: o direito do bebé a nascer, por um lado, o direito da mulher à sua privacidade, por outro lado. Eu acho que o primeiro tem primazia sobre o segundo, mas não posso cancelar o segundo; o segundo direito desta equação não é um erro, não é um mal absoluto; é um direito, que, a meu ver, não tem prioridade.
As pessoas sensatas que defendem o “sim” não anulam a dimensão trágica desta escolha, não dizem que o aborto é um direito, uma conquista ou um cuidado médico como outro qualquer, dizem apenas que o aborto é o mal menor. Consigo conversar com estas pessoas.
Ao invés, não consigo conversar com os radicais do “não”, porque, tal como os radicais do "sim", aboliram o dilema trágico: recusam a legitimidade do direito da mulher à sua privacidade. Querem simplificar o que não pode ser simplificado. Querem diabolizar. Querem sentir-se virtuosos e superiores.
Se não tivermos uma mente aberta à tragédia do livre arbítrio, entramos facilmente no fanatismo. E é isso que tem acontecido, lamento dizê-lo, a boa parte dos eleitores cristãos, evangélicos e católicos.
Tal como salienta o bispo americano Mark Seitz, a obsessão com o aborto tem levado o voto cristão para o colo de um pagão como Donald Trump, que é a negação absoluta do evangelho. O nacionalismo é negado pela Bíblia do princípio ao fim. O Novo Testamento, então, é claríssimo: cuidado com a idolatria pagã dos poderes terrenos; cuidado com a veneração das tribos; cuidado com a ideia de que há um povo escolhido, cuidado com a ideia de que Cristo veio só para "nós". Cristo e Deus são de todos, judeus e pagãos, romanos e gregos, escravos e livres, homens e mulheres.
Como já escrevi aqui, um católico nacionalista é uma contradição nos termos. Uma pessoa pode votar em Trump ou no Chega, tem essa liberdade, mas não pode legitimar esse voto com o cristianismo, não pode. É como dizer que três mais três são dez. É um erro lógico.
As pessoas têm de optar: ou são cristãs ou são nacionalistas. Não podem seguir dois deuses, não podem ser universalistas e pagãs ao mesmo tempo. Quem segue Cristo na parábola do bom samaritano não pode ter uma atitude racista. E quem segue Cristo também não pode ter os comportamentos machistas, nem pode considerar o sexismo de Trump como um pormenor.
No entanto, esta traição do Evangelho tem sido a marca de milhões de cabeças e votos cristãos. Como Trump diz que é anti-aborto (dá-me vontade de rir, mas avancemos), milhões de cristãos fecham os olhos ao seu racismo e sexismo.
O Chega diz que é anti-aborto. Numa atitude pavloviana, muitos católicos portugueses apoiam este partido, fechando os olhos à boçalidade racista de André Ventura contra os “samaritanos”. Um mal não se resolve com outro mal. O racismo é um pecado tão ou mais poderoso do que a defesa do aborto enquanto direito e conquista. Porque é que a vida daquele que está por nascer é superior à vida daquele que já nasceu e que é abertamente marginalizado pelos auto-proclamados líderes da Vida?
Porque é que tantos cristãos, que se julgam donos da Vida, desprezam abertamente as vidas concretas das mulheres emancipadas, dos ‘gays’, dos negros, dos indianos, etc.? A Vida torna-se assim uma causa quase abstrata e afastada das vidas reais que temos à nossa frente.