O novo filme produzido por Will Smith, "Emancipation", cujo cenário é a luta contra a escravatura nos Estados Unidos, não será filmado no estado da Georgia, em protesto contra a nova lei eleitoral. É o primeiro caso de um boicote cinematográfico naquele Estado americano, mas é o mais recente episódio na onda de protestos civis e institucionais contra a lei que dificulta o acesso ao voto.
Num comunicado enviado ao site Deadline, Will Smith e o realizador do filme Antoine Fuqua disseram que não podiam "em boa fé dar apoio económico a um governo que promulga leis eleitorais que têm como objetivo restringir o acesso ao voto".
O negócio do cinema na Georgia é importante para as receitas do estado, que já foi palco para grandes produções como "Deadpool", "Os Vingadores: Endgame", "Wandavision", "Stranger Things" e "The Walking Dead".
Leis eleitorais afetam comunidade negra
Em causa estão as novas leis eleitorais que o governo estadual republicano da Georgia aprovou no mês de março. Segundo as novas medidas, o processo burocrático torna-se mais complexo, já que é exigida documentação para pedir o voto por correspondência, além da identificação no voto em si.
A lei também elimina vários pontos onde é possível deixar os votos antecipados, além de encurtar o tempo disponível para votar antecipadamente. Se as filas para votar nos Estados Unidos podem atingir várias horas, dadas as graves dificuldades em votar, espera-se que a lei provoque constrangimentos que levarão a um aumento da abstenção, favorecendo a atual maioria republicana.
Mas o ponto mais polémico reside no tempo de espera: a lei proíbe de forma veemente qualquer possibilidade de pessoas nas mesas de voto entregarem comida ou água aos eleitores, um ponto que tem sido muito criticado dadas as horas em pé que muitos têm de aguentar e torna o voto especialmente inacessível a pessoas com problemas de saúde.
Segundo os críticos, a lei prejudica especialmente a comunidade negra, que representa um terço dos habitantes da Georgia. Além da população afroamericana não ter um acesso tão facilitado à identificação pessoal, as filas de voto são mais intensas em zonas de Atlanta onde a maioria da população é negra e um aumento ainda maior das filas significará um aumento dos constrangimentos a quem vota (especialmente tendo em conta que as eleições nos Estados Unidos são sempre à terça-feira).
A Georgia não é o único estado que tem aprovado novas leis eleitorais depois das eleições de 2020, mas é o estado onde a população negra é mais afetada e é o estado que mais virou a favor dos democratas.
Em 2020, 88% da comunidade negra votou a favor de Joe Biden e 90% votou nos dois senadores agora democratas do estado, Jon Ossoff e Raphael Warnock, uma revolução política num estado tradicionalmente republicano que ajudou os democratas a assegurar o controlo da Casa Branca e do Senado.
Mas os republicanos continuam a controlar a política estatal e regional, e têm atacado as hipóteses dos democratas em eleições futuras.
"Jim Crow 2.0"
O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, é um dos maiores críticos da nova lei eleitoral e está à procura de criar uma lei eleitoral a nível federal (que deverá cair no Senado devido à exigência de uma maioria de 60 votos).
Biden acusou os legisladores da Georgia de racismo e comparou a nova lei às leis "Jim Crow", dos anos 60. "Isto é Jim Crow do século XXI. Isto tem de parar", disse o Presidente, em março.
As leis "Jim Crow" foram uma série de medidas segregacionistas que vigoraram em estados do Sul (nomeadamente na Georgia), especialmente estados que ficaram do lado dos confederados durante a Guerra Civil americana.
As medidas abrangiam transportes públicos, educação, restaurantes, casas de banho e até fontes de água, criando efetivamente um regime de apartheid nos estados em questão. As leis foram completamente derrotadas entre os anos 50 e 60 o Século XX, depois de leis eleitorais federais que foram sendo aprovadas durante o movimento pelos direitos civis, protagonizado por Martin Luther King e muitos outros ativistas.
Desporto e empresas contra a Georgia
Além do cinema, também o mundo e empresarial e desportivo protestaram contra a lei eleitoral no estado, com algumas empresas a boicotarem serviços na Georgia.
O boicote mais proeminente foi o da MLB, a liga nacional de basebol. O jogo amigável que junta as maiores estrelas da liga estava marcado para julho, em Atlanta, a capital do estado da Georgia, mas a liga tomou uma decisão inédita e mudou o jogo para um estádio em Denver, no estado do Colorado.
Joe Biden apoiou a decisão, que foi amplamente criticada pelos republicanos, que acusaram a liga de "cultura de cancelamento".
Também grandes empresas, como a Delta Airlines e a Coca-Cola, lançaram comunicados a criticar a lei eleitoral. A Coca-Cola, uma das maiores empresas do mundo, tem a sua sede na cidade de Atlanta e, em comunicado, o seu CEO, James Quincey, disse que a marca mundial "não apoia esta legislação, por tornar o voto mais difícil".