PSD e CDS querem ver Mário Centeno de novo no Parlamento para um esclarecimento que pretendem definitivo: existiu ou não um acordo para isentar a anterior administração da Caixa Geral de Depósitos (CGD) do dever legal de entrega de declaração de património e rendimentos?
Documentação publicada pelo jornal online “ECO”, e-mails do anterior presidente da CGD ao Ministério das Finanças apontam para a troca de mensagens sobre o tema. Como Mário Centeno respondeu – por escrito – à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) afirmando que “inexistem comunicações”, o CDS acusa o ministro de mentir.
O deputado João Almeida defende que importa agora perguntar a Mário Centeno “se quer voltar atrás” nas declarações ou, não querendo arriscar “as consequências penais da mentira”, citando o crime de perjúrio em sede de CPI.
O Ministério acusou os centristas de “vil tentativa de assassinato de carácter” e o PS que a acusação do CDS é “uma montanha que pariu um rato”. Já o Presidente da República saiu em defesa do ministro.
A questão da eventual demissão de Mário Centeno marcou o debate político do final da semana e começou por ser colocada a Daniel Bessa, membro do painel do programa Conversas Cruzadas deste domingo.
“Tenho a maior das dificuldades em responder à questão se o ministro deve ser demitido”, diz o economista.
“Por um lado, é evidente que o CDS tem essa afirmação peremptória: o ministro mentiu. Mas, depois, o mais alto magistrado da nação, o nosso Presidente da República, disse-me – e eu acho que ouvi bem – não estar provado que o ministro tenha mentido e só estaria se nós tivéssemos visto um papel escrito e assinado pelo ministro a dizer o que lhe imputam. O Presidente da República é o Presidente da República e perante o Presidente da República eu baixo as orelhas”, afirma Daniel Bessa.
Daniel Bessa. “Claro que fico preocupado”
“Claro que fico preocupado. Imagino que a mesma capacidade de prova teria um vídeo onde o ministro estivesse a dizer as tais coisas de que o acusam em filme ou só em registo sonoro. Mesmo assim, não sei se o papel assinado, se o vídeo, seriam suficientes elementos probatórios, porque o se pode sempre dizer que o ministro tem uma peculiaridade qualquer. Que para ele as palavras não significam rigorosamente o mesmo que para nós. E, portanto, não vamos chegar a conclusão alguma”, alfineta Daniel Bessa.
“Nestes últimos dias, o que mais me tem interessado é o trabalho que tenho visto feito por alguma gente – já agora de gente que anda lá pelo ‘Observador’ – a tentar, sobre cada uma destas situações reunir o maior número possível de factos e permitir a cada um de nós chegar às conclusões o mais verdadeiras possível, sendo que a verdade absoluta não existe. A verdade não existe, pelo menos a este nível e postas as coisas neste ponto”, faz notar o economista.
“Sobre se o ministro mentiu ou não mentiu tenho, há muito, a minha conclusão. Partilhá-la-ei com os meus amigos e com qualquer pessoa com que fale em privado. Agora em público, aqui, dizer que o ministro mentiu? Isso não. Ainda acabo na cadeia. Vou mais longe que o presidente da república: mesmo que o papel com aquela afirmação estivesse assinado pelo ministro não sei se, no ponto a que chegamos, seria suficiente para poder concluir que o ministro mentiu”, diz Daniel Bessa sem esconder o traço irónico, marca da casa.
Álvaro Santos Almeida: “Fazer lei ad hominem chega para demissão”
Já Álvaro Santos Almeida desloca o epicentro do debate para outra questão: saber se o ministro das finanças fez uma lei à medida.
“O mais importante, acho eu, não é saber se o ministro mentiu. Obviamente isso é fundamental no sentido em que demonstra o carácter de alguém a desempenhar uma função importante no país, mas em relação à questão se deve ou não demitir-se acho que se devia afastar por um facto que, para mim, está provado. É que num Estado de Direito democrático, o ministro das Finanças fez uma lei geral da República a pedido de um cidadão para benefício desse cidadão. Para mim isso está provado”, afirma o professor da Universidade do Porto.
“O ministro nem fez a lei, pediu à pessoa em causa que lhe desse a lei para ele aprovar. Num Estado de Direito democrático termos um ministro das Finanças – e um Governo – que aprova um decreto-lei elaborado por uma pessoa, a pedido dessa pessoa, é uma violação do princípio de que as leis devem ser gerais e abstractas. Fazer uma lei ‘ad hominem’ é uma razão suficiente para a demissão do ministro das finanças”, sustenta Álvaro Santos Almeida.
Luís Aguiar-Conraria: “Discuta-se é se é crime ou não é”
Já Luís Aguiar-Conraria amplia ainda mais o âmbito da discussão do Conversas Cruzadas defendendo a tese de que “se não foi crime, mude-se a lei para que passe a ser”.
“Parece-me óbvio que Mário Centeno se devia ter demitido ou devia ter sido demitido pelos motivos que Álvaro Santos Almeida acabou de apontar e acho algo absurdo estarmos a discutir isso nesta fase do campeonato”, defende o professor da Universidade do Minho.
“O que deveríamos estar a discutir neste momento – e gostaria de ver juristas a ser entrevistados com perguntas concretas – era saber se o que já se é público configura o crime de corrupção ou não. Eu não conheço a lei suficientemente bem para saber se isto que já se sabe – que é fazer uma lei à medida de uma pessoa e em que essa pessoa encarrega os seus advogados de fazerem essa lei – por si só não configura o crime de corrupção”, diz Luís Aguiar-Conraria.
“Portanto, eu não estou a dizer que existe crime de corrupção, porque, simplesmente, eu não conheço a lei. Agora o que posso dizer é que se, por acaso, os juristas vierem a terreiro explicar que o que se passou, de facto, não é corrupção – e não foi cometido qualquer crime – então eu, como cidadão, posso opinar e dizer: as leis devem ser mudadas para que passe a ser crime. O que aconteceu é absurdo”, indica o economista.
“Vivemos melhor se não soubermos como são feitas as salsichas e as leis”
“Indo agora aqui a António Lobo Xavier e às declarações de que tudo isto era normal – passo a citar: ‘não é passível de nenhuma censura política’ – só demonstra o pântano em que vivemos. Mas há aquela famosa frase de Bismarck: ‘viveremos muito mais descansados se não soubermos como são feitas as salsichas e as leis’”.
“O facto de pessoas tão importantes como António Lobo Xavier acharem que isto é normal, o facto de haver muitos deputados do PSD e do CDS agarrados apenas à parte da mentira, sem referir a questão da lei feita à medida dá-me a entender que leis destas – encomendadas a escritórios de advogados – já foram muitas vezes feitas no passado. Isso pode ilibar culpas individuais, mas apenas aumenta a culpa colectiva”, sustenta Luís Aguiar-Conraria.
“Quando o CDS vem dizer que o ministro mentiu e que isso tem consequências penais está obviamente a falar de desrespeito da lei – o facto do ministro poder socorrer-se de alguma tecnicalidade – e o de faltar à verdade numa comissão parlamentar de inquérito (CPI) onde um ministro não pode mentir tal como eu não posso ir a um tribunal mentir. Agora surpreende-me que o debate seja só à volta disto e sugere-me que há muitos telhados de vidros nesta forma de fazer as leis”, conclui o professor da Universidade do Minho.
Daniel Bessa: “Estado está enfraquecido”
Já Daniel Bessa reflecte sobre um “Estado enfraquecido”. “Noutras vidas, nos meus tempos de consultor, por exemplo, assisti a negociações em matéria de parcerias público privadas – e estamos a falar de matéria ‘pesada’ – onde as equipas que assessoram os privados estavam a milhas de distância das equipas que apoiavam o Estado”, recorda o ex-director-geral da Cotec Portugal.
“Portanto, quando se está a negociar uma PPP – pode ser nas estradas, nos equipamentos, na infraestruturas – não há comparação possível entre a equipa de economistas, juristas, de assessoria técnica, digamos assim, a assessorar os privados – e aí estamos a falar de contratos, não de leis – e o Estado. Não há comparação possível entre a maturidade, a experiência, a senioridade dos meios de que os privados se fazem rodear nessas negociações em relação aos meios com que o estado avança nesses processos. Isto é verdade. Não é preciso estar aqui escrito num papel com a minha assinatura num papel. Isto é verdade e fui eu que o disse”, garante Daniel Bessa.
No debate em curso no espaço público, Álvaro Santos Almeida desliga ainda um eventual afastamento do ministro de eventuais danos na imagem externa do país.
“Como já vimos hoje nos sinais das agências de rating, pelo que nos dizem as taxas de juro, a credibilidade externa não é muita e, portanto, não me parece que seja significativamente afectada pelo facto do ministro das finanças ficar ou não no seu cargo. A questão não é essa”, diz o antigo quadro superior do FMI.
“A questão é saber se temos um ministro das Finanças que respeita a Constituição. Saber se temos um ministro das Finanças capaz de tomar decisões específicas para uma pessoa específica. Não sei que documentos o PS irá apresentar na terça-feira, mas a não ser que o documento diga que a lei publicada em Diário da República não foi publicada ou então que foi uma lei que saiu da cabeça de Ricardo Mourinho Félix e não foi uma lei pedida por António Domingues – a não ser que seja isto, nada muda em relação ao que eu disse e à necessidade de censurar politicamente quem toma decisões para beneficiar pessoas concretas”, diz Álvaro Santos Almeida.
Álvaro Santos Almeida: “Debate compromete estabilidade do Governo, não da CGD”
Luís Aguiar-Conraria discorre sobre a estratégia socialista anunciada para o início da semana. “Aí acho que o PS irá tentar dizer ou quererá demonstrar é que o ministro Centeno não mentiu quando disse que não se comprometeu a que não tinham de entregar declarações de rendimentos. Penso que é esse o ponto a que o PS se vai agarrar. Pessoalmente, estou-me nas tintas para isso e as minhas críticas nada têm a ver com esse ponto”, diz.
Já Álvaro Santos Almeida volta ao (seu) ponto. “Isso é secundário. O que é importante é que o ministro tomou aquela decisão para beneficiar António Domingues”, diz.
“Tenho alguma dificuldade em perceber o argumento de que estamos a desestabilizar a CGD e de que forma o banco pode ser prejudicado com este tipo de debate. A Caixa Geral de Depósitos é uma empresa pública não está cotada em Bolsa, portanto os accionistas e os mercados bolsistas não vão reagir”, nota o professor da Universidade do Porto.
“A CGD pode estar dependente de financiamento nos mercados internacionais e não acredito que a vontade para financiar a Caixa por parte de outros bancos seja afectada por relatos à volta do ministro das Finanças se ele se demite ou não. Vejo com alguma dificuldade o argumento de que levantar estas questões ponha em causa a estabilidade da Caixa Geral de Depósitos. Coloca em causa, isso sim, a estabilidade do Governo, mas é exactamente para isso que estão lá os deputados da oposição. Se não fazem oposição estão lá a fazer o quê?”, questiona Álvaro Santos Almeida.
Daniel Bessa “A voz que fala mais grosso é a do poder”
Na edição do “Expresso Curto” de sexta-feira, Valdemar Cruz lembrava que a "verdade é, sempre foi, uma questão de poder. Do poder de quem tem o poder de fazer valer um ponto de vista". É o registo a valer a interpelação final a Daniel Bessa.
“Foi sempre assim, não sendo assim para o comum dos mortais”, concorda o antigo ministro da Economia. “Não é assim na relação interpessoal, mas quando o debate é trazido para este nível, para o nível do Estado, a verdade é um atributo do poder”, afirma Daniel Bessa.
“E não é por acaso que eu insisto com as pessoas para que se informem o mais possível. Porque se não se informarem o mais possível ficarão sempre nas mãos da voz que fala mais grosso. E a voz que fala mais grosso é a do poder. Os tempos não vão fáceis nesse sentido”, sublinha.
“Mas em relação à CGD incomoda-me mais, por exemplo, o que ouvi de que "esperemos que agora a Caixa seja diferente". A CGD não tem funcionado. Tanto faz que exista ou não. Esperemos que Paulo Macedo mude isso. É verdadeiramente o que me preocupa”, conclui Daniel Bessa.