O cheiro intenso a peixe mistura-se com o odor a podre, assim que se entra na Rua Major Afonso Palla, em Algés, a caminho da estação da CP, uma das zonas mais atingidas pelas chuva intensa que caiu quarta-feira à noite. "É o cheiro do peixe e marisco que ainda não conseguimos retirar das arcas, porque estão viradas ao contrário há já 24 horas", explica Carla Ferreira, proprietária de uma loja de congelados.
Carla suspira fundo ao chegar junto de uma funcionária que por ela espera junto à porta. Quase nem falam. Ambas trocam as botas que têm calçadas por galochas e arregaçam as mangas. Atento está um técnico de frio, que vai tentar recuperar as máquinas. Se não o conseguir, Carla já tem uma ideia do prejuízo.
"Se não conseguirmos recuperar nenhuma arca, já temos uma ideia, porque fizemos um investimento muito grande no início do ano em equipamentos novos. Estamos a falar de mais de meio milhão" em prejuízos.
A chuva foi tanta que o nível da água, nesta rua, atingiu pelo menos um metro e sessenta. A marca lá está, na fachada do edifício. Com a força da lama, uma das entradas da loja de congelados partiu-se, permitindo a entrada de ainda mais água e lama. Arcas frigorificas, com centenas de quilos de peso, ficaram viradas do avesso.
Um pouco mais à frente, um cidadão chinês olha, incrédulo, para o interior da sua loja. Está de chinelos, calças de fato de treino puxadas até aos joelhos e com um casaco que já viu melhores dias, tal a quantidade de lama que o cobre. Ganha balanço e desce as escadas de acesso à loja, que está totalmente inundada.
À porta estão caixas e caixas cheias do que parecem ser meias, panos da loiça, brinquedos, cadernos e uma série de outros produtos, estes impossíveis de identificar, tal a quantidade de lama.
Refeição a meio e fuga pelo telhado
Do outro lado da rua, fica um emblemático restaurante: o "Petit D´Algés".
Na noite de quarta-feira, os cerca de 25 clientes que estavam no interior tiveram de subir para as mesas para fugir da água. Mas como esta não parava de subir, lá saíram, com água pela cintura. A conta ficou por pagar, mas António Jorge, um dos proprietários, garante que "são clientes fiéis" e que, por isso, vão pagar mais tarde. Fossem esses todos os problemas.
Naquela noite, a água continuou a subir ao ponto de os funcionários, sem outra alternativa, terem de subir para as águas-furtadas do pequeno edifício. Dai, e como a ajuda tardava, a solução para sair foi mais radical.
"Por volta das três da manhã, abriram as janelas das águas-furtadas, andaram pelo telhado até ao prédio vizinho, em obras e coberto por um andaime. Percorreram o andaime e chegaram a uma zona mais elevada, com menos água", mais próximo da estação, descreve António Jorge.
Ali, o túnel de acesso às plataformas está ainda encerrado. Mas há comboios a circular, só que não param.
Maria Francisca esteve num destes comboios. E tem queixas a fazer. A CP podia informar os utentes que o comboio não pára em Algés.
"Ninguém nos avisou. Por acaso, perguntei ao revisor e o senhor disse-me que tinha de optar por sair na Cruz Quebrada ou em Belém. Como o meu passe não dá para além de Algés, tive de sair na Cruz Quebrada e apanhei a Carris até Algés", explica.
O discurso é interrompido por uma senhora, mesmo ali ao lado, que pergunta a um polícia municipal como pode fazer para chegar ao outro lado da estação. O túnel também serve para atravessar a linha e chegar junto ao rio.
O polícia lá explica: "Tem de ir a pé até Belém, fazer a travessia pedonal superior e do outro lado, seguir a pé até ao seu destino".
Ironia das ironias: a senhora em causa é funcionária do IPMA, o Instituto Português do Mar e Atmosfera.