A Pfizer começa a testar a vacina contra a Covid-19 em crianças, mas há pediatras que duvidam da eficácia da medida. É o caso de Francisco Abecasis, intensivista pediátrico do Hospital de Santa Maria.
Em entrevista à Renascença, este especialista considera que, se a doença tivesse nos mais velhos a expressão que tem nos mais novos, nem sequer seria precisa uma vacina.
Mas há algo que preocupa mais Francisco Abecasis: a doença nova que está a surgir entre os pré-adolescentes e adolescentes que tiveram Covid-19. Trata-se de uma síndrome inflamatória multisistémica, que surge entre três e quatro semanas depois de curada a infeção com SARS-Cov2 e cujos efeitos a longo prazo não são ainda conhecidos.
Em Portugal, já houve perto de 20 casos e, de acordo com este especialista, é natural que surjam mais.
Estão a aumentar os casos de síndrome inflamatório multisistémico na sequência de infeções com Covid-19?
Nós de facto, em termos de cuidados intensivos pediátricos, no Hospital de Santa Maria, na primeira vaga tivemos um caso confirmado desta síndrome inflamatória multisistémica pós-Covid, que felizmente teve um bom desfecho. Foi uma criança que precisou de cuidados intensivos. E agora estamos a ter mais casos nesta segunda vaga.
Já tivemos três casos confirmados, mais dois casos suspeitos, portanto, o número, de facto, aumentou, o que seria de esperar – foi o que aconteceu em todos os países. Quando há uma circulação maior do vírus na comunidade, embora as crianças sejam um grupo etário que está bastante protegido e que é raro terem doença grave, sobretudo, na fase aguda, estas síndromes, que são respostas imunológicas depois da infeção aguda, surgem três a quatro semanas depois de terem Covid-19.
Surgem em idade pediátrica, sobretudo, com idades muito variadas, mas a maioria entre os 8 e os 15 anos. E que agora, na segunda vaga, como houve uma maior circulação do vírus, houve um maior número de casos.
Em que idades é que houve mais casos?
A maioria dos casos que nós tivemos foi entre os 8 e os 15 anos. Há casos descritos noutros países em todos os grupos etários, mas a incidência parece ser maior na pré-adolescência e adolescência do que em crianças mais pequenas. Essa é uma característica que a distingue da síndrome da doença de Kawasaki, que tem alguns pontos comuns com esta doença mas que surge habitualmente abaixo dos 5 anos, portanto, em crianças mais novas.
Quais são os sintomas? A que devem os pais estar atentos?
Haver uma história prévia de infeção de Covid-19 ou suspeita cerca de um mês antes. Depois a criança começa habitualmente com febre, com sintomas gastrointestinais (pode ter vómitos e diarreia) e surgem muitas vezes lesões cutâneas – umas manchas um pouco encarnadas na pele.
Pode ter também lesões nos olhos, uma hiperémia (a parte branca do olho ficar vermelha) e depois a criança começa a ficar mais prostrada, mais caída, porque esta síndrome dá habitualmente hipotensão e, por isso, a criança sente falta de energia.
São sobretudo estes sintomas, não tanto sintomas respiratórios. Habitualmente, não há sintomas respiratórios ou são menos frequentes nesta fase da doença. Mas se uma criança tiver um quadro deste género, sobretudo com uma infeção anterior de Covid-19, deve procurar os cuidados médicos, porque podemos estar perante esta síndrome.
Mas há casos em que as crianças são assintomáticas, os pais nem se apercebem que a criança teve Covid. Se tiverem esse quadro também devem ir ao hospital?
Essa é uma excelente pergunta, porque a criança pode ter estado infetada e isso passou despercebido. Mas, habitualmente, quando as crianças estão doentes, na maior parte dos casos têm sido infetadas por membros do agregado familiar e, portanto, se houver uma história de Covid na família, mesmo que a criança não tenha sintomas (até pode não ter sido testada) se a mãe ou o pai tiveram, por exemplo, temos de pensar neste quadro.
Se não houver história nenhuma, mas o quadro for muito sugestivo, sobretudo, com queixas gastrointestinais, acompanhado por lesões cutâneas, lesões nos olhos, temos tido casos também com dores de garganta, até dificuldade em deglutir, com dor no pescoço – já tivemos dois casos com estas queixas – se o quadro for muito sugestivo, obviamente devem procurar cuidados de saúde e depois os médicos farão os testes necessários para determinar se há ou não esta síndrome.
Que consequências é que podem advir dessa doença?
O que tem acontecido na maioria dos casos é que as crianças entram no que nós chamamos um quadro de choque: ficam hipotensas e precisam de fazer medicação para suportar a parte cardiovascular. Mas, habitualmente, o curso é benigno, ou seja, precisam de cuidados intensivos, mas não durante muito tempo e com o tratamento correto melhoram.
As consequências mais graves, aquelas que mais tememos, é que, à semelhança da doença de Kawasaki, já estão descritos alguns casos que tiveram problemas cardíacos na sequência desta doença e esses problemas cardíacos têm a ver com as artérias coronárias que podem desenvolver aneurismas das coronárias. Isso é uma situação de facto complexa.
Nós não tivemos nenhum caso que tenha evoluído nesse sentido e penso que em Portugal não houve, mas em países que tiveram muitos casos, mais de 100, 200 casos; algumas desenvolveram, de facto, esse quadro de doença cardíaca por causa do vírus.
Efeitos a mais longo prazo, ainda é cedo para sabermos, porque a doença não tem ainda um ano sequer. Ainda não sabemos, mas à partida a evolução dos doentes foi positiva. Todos os doentes voltaram para casa sem sequelas.
No total, tem ideia de quantos casos é que já houve em Portugal?
Números exatos, nós não temos. Penso que terá havido 16, 17 casos no nosso país, mas não sabemos exatamente, porque não temos uma rede que possamos consultar. Deve ser à volta desse número, entre 10 e 20 casos no total do país até agora, embora seja de esperar que, mesmo que os casos de Covid comecem a reduzir agora, como isto é uma doença que surge depois da infeção aguda, será de esperar que vamos continuar a ter estes casos, eles não vão desaparecer.
De qualquer forma, a Covid-19 é uma doença relativamente benigna para as crianças, não tem grandes efeitos. Porque é que isto acontece?
Tem a ver com a forma como o sistema imunitário das crianças responde às infeções, que é diferente da dos adultos, quer ao nível dos anticorpos que geram quer ao nível de como se monta a defesa.
O que é certo é que o sistema imunitário das crianças está preparado para encontrar vírus novos. É normal que uma criança entre para a creche e desenvolva imensas infeções virais novas e, portanto, o sistema imunitário está preparado para isso: para encontrar vírus que nunca conheceu. A razão exata não se conhece, mas tem a ver com esta resposta imunitária.
A outra razão é que muitas vezes não é o próprio vírus que causa aqueles danos todos que nós vemos, mas é o nosso sistema imunológico que, como não sabe reagir a este novo vírus, reage de uma forma exagerada e isso é que está na base de alguns tratamentos com imunossupressores, com corticoides, para tratar a Covid-19.
Nesse quadro, será que as crianças beneficiariam de uma vacina contra a Covid-19?
A questão da vacina é uma boa questão. Não é muito simples, porque os testes para esta vacina não foram feitos em crianças. É difícil aplicar uma vacina que não foi testada em idade pediátrica e depois temos de perceber também que, se vacinarmos as crianças, não será provavelmente para as protegermos a elas, porque elas não iriam ter uma doença grave. Se a doença tivesse em toda a população a expressão que tem nas crianças, provavelmente não existiria vacina nenhuma.
Existe vacina porque é uma doença grave nas pessoas mais velhas e que já matou muita gente. Vacinar as crianças, temos de perceber se será ou não justo para quem é vacinado, se estamos a vacinar para as proteger a elas ou para proteger os mais velhos. Mas, nesse caso, faria mais sentido vacinar as pessoas mais velhas.
Não tenho uma opinião completamente formada sobre isso, acho que é um tema muito controverso e muito polémico. Provavelmente, não haverá uma resposta certa, mas se o objetivo da vacinação for proteger os mais velhos, então temos de esperar mais tempo para ter a certeza absoluta que as vacinas são seguras, porque, imaginemos, vacinar crianças em larga escala com uma vacina muito recente, se depois se vier a verificar que há algum efeito secundário, seria muito complicado, porque afinal estaríamos a vacinar contra uma doença que não representa um problema grave para elas.
Quando fala em crianças está a falar também em adolescentes?
Sim, até aos 18 anos.