O eurodeputado e vereador em Lisboa lidera a quinta candidatura em sete anos. Diz que é a falta de resposta a problemas concretos das pessoas que levam ao crescimento das forças antidemocráticas, retrógradas, fascizantes.
Com qual dos antigos candidatos presidenciais apoiados pelo PCP se identifica mais?
Eu sou candidato apoiado pelo PCP, posso dizer que me orgulho disso. Será uma espécie de selo de qualidade desta candidatura no que respeita à sua visão, ao projecto, às ideias, mas quero deixar bastante claro que nestas eleições me dirijo a muito mais gente, muito para lá das fronteiras do PCP. Dirijo-me a todos aqueles que se questionam sobre o presente e o futuro do país e que acham que as suas vidas podem ser melhores.
Estava a perguntar para quem olha como inspiração.
Percebo a pergunta, mas ela acaba, de alguma forma, por desvalorizar muito do que é esta candidatura. Outros candidatos que o PCP apresentou noutras alturas tiveram sem dúvida cada um os seus méritos adequados às circunstâncias em que cada momento de vivia.
Pela sua idade só se poderia inspirar nos três ou quatro últimos.
Eu tenho memória histórica que vai além do meu período de vida.
Na apresentação na Voz do Operário transpareceu um certo afastamento de Jerónimo de Sousa que não apenas o distanciamento social. Houve algum desentendimento?
Devo dizer que me surpreende a pergunta. De maneira nenhuma. Cumprimentei Jerónimo de Sousa antes de subir ao palco, tinha estado a falar com ele antes do evento.
Entrou sozinho, quase ia a sair sozinho...
Não há, asseguro-lhe, nenhum afastamento - tirando aquele a que hoje estamos obrigados em circunstâncias como aquelas, num espaço fechado. Posso descansar-vos que não há nenhum problema, pelo contrário.
Quando foi convidado para se candidatar?
Não creio que seja muito importante. Esse processo de decisão comporta também uma dimensão de reflexão pessoal que leva o seu tempo, não é uma coisa imediata.
Na noite das presidenciais, Jerónimo disse, referindo-se ao Bloco, ‘também podíamos ter arranjado uma candidata mais engraçadinha’. Admite que o seu aspecto também foi a casting no PCP desta vez?
Creio que a elevação do debate político não ganha com começarmos a centrar-nos neste ou naquele aspecto físico do candidato ou candidata. Estou aqui fundamentalmente para discutir ideias e a visão que tenho para o país a partir do exercício das funções enquanto PR e para discutir, em última instância, um projecto que permita vencer dificuldades, desafios e bloqueios que o país enfrenta.
Foi uma frase machista dita pelo secretário-geral do seu partido. Nunca faria isso?
Tive o cuidado de, no momento de apresentação desta candidatura, dirigir-me também às mulheres que são vítimas na sociedade, na família, no trabalho de múltiplas discriminações. E até a partir do exercício das funções de Presidente, que jura defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição, não esqueço que esta atribui ao Estado, como uma das suas tarefas fundamentais, promover a igualdade entre homens e mulheres.
Para um partido que critica os que se servem da política e defende a exclusividade na AR, vai à quinta eleição e tem dois cargos, de eurodeputado e vereador. Vai abdicar de algum deles?
A quinta eleição num horizonte temporal de mais de uma década. Desempenho a função de deputado ao Parlamento Europeu (PE) em exclusividade; sou vereador na Câmara de Lisboa, mas não tenho um pelouro atribuído. Faço questão que uma grande parte do meu trabalho seja desenvolvido no país. O cargo de PR é incompatível com qualquer um dos outros.
Lidera listas há uma década: isso não indicia alguma falta de recursos no partido?
De maneira nenhuma, até porque essas foram apenas algumas das várias eleições que tivemos neste período.
Duas vezes ao PE, duas à CML, agora a PR. Insisto: é já um tiro de partida para secretário-geral?
Eu percebo o interesse da pergunta mas não quero contribuir para desvalorizar estas eleições. E ao responder a essa pergunta estaria não só a desvalorizar as eleições, mas também a minha própria candidatura.
Mas estaria a valorizar a liderança do partido.
Eu sou, nestas eleições, candidato a PR e dirijo-me muito para lá do que é esse colectivo partidário que me apoia e tenho muito orgulho nele.
Jerónimo de Sousa disse que esta candidatura é para levar até ao fim. No caso de haver risco de Ana Gomes ficar em terceiro lugar ultrapassada pela extrema-direita, faria uma indicação de voto na candidata socialista?
Esta candidatura é para levar até ao fim e não é por acaso. Porque transporta consigo um sentido de necessidade, quase que de urgência, que a torna imprescindível no contexto que estamos a viver, muito específico das nossas vidas.
Não viveu na clandestinidade, não participou nas lutas antifascistas. A escolha do comunismo foi uma herança de família ou uma opção sua?
Não confundamos idade com uma memória histórica colectiva que transcende o período das nossas vidas. Eu, felizmente, conheço bem o que foi em Portugal todo esse período da clandestinidade, da ditadura fascista, o caminho que nos levou à revolução, o que foram esses anos riquíssimos do ponto de vista de vivências colectivas genuinamente democráticas que levaram à instituição do regime que hoje temos. Que é, sob vários pontos de vista, um dos regimes democráticos mais avançados da Europa, que contém em si mesmo resposta a muitos problemas que nós enfrentamos...
Então o que falta?
Era aí que queria chegar. Temos vivido num conflito entre esse carácter democrático, progressista e avançado do regime e a acção ao longo dos anos de governos e Presidentes da República que têm, de alguma forma, bloqueado a plena concretização do projeto contido no texto constitucional. É a falta de resposta a problemas concretos na vida das pessoas - emprego, direitos, estabilidade, perspetivas de realização profissional - que conduzem a esse descontentamento e levam algumas forças antidemocráticas, retrógradas, fascizantes, a tentarem manipular esse descontentamento. Não para defender o regime democrático que permite responder a esses problemas mas, pelo contrário, para atacar esse regime democrático deixando-nos ainda mais longe da resolução desses problemas.
E é nessa medida que, não minimizando o perigo que há pouco referia, a maneira mais clara, mais firme, mais determinada de dizer que não a esse tipo de projectos é votar numa candidatura que se assume como herdeira e inspirada naqueles que lutaram pela liberdade e pela democracia em Portugal como nenhuns outros.
E em que é que Marcelo contribuiu, nestes cinco anos, para que esses extremismos grassassem?
Na apreciação que faço ao mandato do Presidente da República identifico tendências que foram relativamente claras: em momentos-chave de conflito, o Presidente nunca pendeu para o lado dos mais desprotegidos. Foi assim na promulgação das alterações à legislação do trabalho. Outro exemplo é a habitação - este foi o Presidente que pôs em causa o direito de preferência dos inquilinos de um grande grupo financeiro com um veto. Quando foi necessário defender o carácter público dos transportes em Lisboa e no Porto, o Presidente levantou dificuldades dizendo que não podíamos vedar o caminho da privatização. Quando se discutiu uma lei de bases da saúde, o Presidente levantou também consabidas dificuldades a esse caminho [de saúde totalmente pública].
Ainda mais à direita, André Ventura diz que quer mudar o regime. No seu caso também tentaria mudá-lo? Como?
Se há coisa que inspira esta candidatura é o regime democrático consagrado na Constituição da República Portuguesa e que resulta da revolução do 25 de Abril. Revejo-me nele e, se há coisa que é preciso, não é pô-lo em causa, é fortalecer as suas raízes.
Vê-se mais como um Presidente de todos os portugueses ou um Presidente comunista de todos os portugueses?
Acho que um Presidente que jure, como é suposto na tomada de posse, defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição, tem hoje obrigatoriamente de ser comprometido com as dificuldades, os interesses da esmagadora maioria da população. Mas isso significa também enfrentar interesses poderosos que têm limitado o desenvolvimento do país e que hoje dominam a economia nacional.
Há variadas forças no Parlamento que dizem a mesma coisa: enfrentar os interesses económicos, jurar a CRP de Abril. Mas em termos de inspiração como classifica o regime de Putin?
Deixe-me fazer um parêntesis: não sei de há muitas forças a dizer aquilo que eu disse. O que sei é que há aqueles que, além de o dizerem, afirmam-no na prática. Em pleno estado de emergência que limitou direitos e liberdades inscritos na CRP, foi um acto de coragem dizer que as coisas não podiam continuar assim, houve quem juntasse o discurso à prática e tivesse sentido que era necessário estar, como eu estive,
Como classifica o regime de Putin?
Eu não quero fugir a nenhuma pergunta. Deixe-se concluir: para retomar aquilo que me disse ‘ah, mas isso muitos dizem’, creio que não, mas seguramente poucos fazem. E eu estou entre os que fizeram. Estive presente no momento em que era necessário dizer que não podiam continuar um conjunto de abusos, estive presente no 1.º de Maio.
Diga-me lá, em relação a estas três inspirações, que acho que todos os portugueses se perguntam: Rússia, o que é que pensa?
Vou se muito claro a respeito disso: no exemplo que refere não encontro inspiração particular.
Como classifica aquele regime?
Classifico-o a partir do que deve ser o exercício das funções a que me candidato. A Constituição diz muito claramente que Portugal se deve pautar pelo respeito pelo direito internacional, pela carta das Nações Unidas, pelo direito de cada povo a escolher livremente o seu caminho. Eu escolho para o meu país e bato-me por um caminho que é muito diferente, e em muitos aspectos está nos antípodas daquele que refere.
Como classifica o regime do sr. Trump?
Eu defendo para o meu país algo que é muito diferente de qualquer dos exemplos que deu. Que em muitos aspectos estão nos antípodas daquilo que se passa nos exemplos que deu.
Incluindo na Venezuela?
Independentemente da apreciação que possa fazer de cada um desses casos e até me deu dois exemplos que...
Coreia do Norte?
... que são bastante diferentes, e a nossa Constituição - e eu revejo-me nessa disposição - garante uma visão que dá a cada povo o direito de escolher livremente o caminho que entender.
Última oportunidade de classificar um regime: Venezuela?
Para lhe ser franco, encontro naquilo que defendo para o meu país, no projecto de desenvolvimento que tenho para Portugal inúmeras diferenças com qualquer um dos exemplos que referiu.
Como Presidente, como é que se ia relacionar com estes quatro regimes?
Obviamente é isso que importa. Uma crítica que faço ao actual Presidente foi algo que causou até compreensível repúdio em muitos democratas: a forma como se incluiu entre os primeiros que saudaram Trump e Bolsonaro ou Netanyahu. Agora, há uma questão que temos que ter presente: o Presidente tem que ter esse sentido de, respeitando a Constituição e como representante máximo do Estado…
Não devia condenar estes quatro regimes?
Tem que, por um lado, pautar esse relacionamento pelo direito internacional, pelo respeito pela carta das Nações Unidas, pelo direito de cada país e cada povo escolherem o seu caminho livre de ingerências, de acordo com a sua vontade.
Mas no caso da Venezuela havia a comunidade portuguesa.
E tem que ter outra coisa, designadamente no caso da Venezuela: ter em conta em primeiro lugar o interesse da imensa comunidade portuguesa que vive e trabalha no país.
Isso significa que devia ter actuado de forma mais veemente?
E neste caso creio que não devia ter dado espaço a desenvolvimentos, como o que foi feito pela UE e que se veio a revelar desastroso, como o do reconhecimento de um golpe de um Presidente golpista que, em lugar de contribuírem para a distensão do clima social, político e económico, contribuíram, pelo contrário, para um clima de confrontação acrescido
Falemos um bocadinho de futuro. O PCP é contra a eutanásia. O processo da legalização está quase a terminar na AR e há probabilidade de ser aprovado. Como Presidente vetava?
Independentemente de uma apreciação pessoal que cada um de nós pode fazer e da enorme complexidade da questão, dos enormes sentimentos contraditórios que nos desperta, como Presidente respeitaria a vontade expressa pela AR.
Nem pedia fiscalização ao TC? Promulgava, portanto.
A existirem dúvidas, elas têm sido suscitadas a partir de quadrantes diferentes. O sentido geral e específico da resposta é respeitar a vontade do Parlamento. Naturalmente, se houver um pronunciamento do TC, ele tem que ser tido em conta.
Em termos pessoais o que pensa sobre o assunto?
É uma questão muito complexa que nos suscita sentimentos contraditórios. Tendo a compreender a situação de alguém que é empurrado para uma situação de extremo sofrimento sem solução e a respeitar as várias opiniões que nessa hora tão difícil se podem expressar. Independentemente disso, é claro que temos muito a fazer para colocar à disposição das pessoas que se vêem numa situação limite dessas todos os meios, recursos e possibilidades da ciência e da técnica para minimizar o sofrimento, e isso não acontece - e creio que ninguém pode descansar, enquanto isso não acontecer em Portugal. Quanto ao resto e tendo o Presidente que tomar uma decisão a esse respeito, respeitaria.
Há ano e meio dizia-nos que o papel do PCP estava a ser mais bem compreendido do que no início da “geringonça”, mas em 2017 veio a queda a pique nas autárquicas, no ano passado nas europeias e nas legislativas. Foi benéfico ou prejudicial?
O PCP fez, faz e tem vindo a fazer uma avaliação desse período na qual eu me revejo: foi um período importante na vida nacional. Já toda a gente percebeu que o PCP não determina os seus posicionamentos por preocupações eleitoralistas de curto prazo.
Aquela ideia de que não é possível, ao mesmo tempo, melhorarmos a vida das pessoas, acrescentarmos direitos, melhorarmos rendimentos e a economia, essa ideia de que não era possível, ruiu. Demonstrou-se que era possível. A vida das pessoas de facto melhorou ainda que de forma modesta e limitada. O PCP também não alimentou ilusões porque teve a preocupação de dizer muito cedo: atenção, não vejam aqui o quadro que torne possível tudo e mais alguma coisa que se deseja.
Se não olha para os resultados eleitorais para definir a sua estratégia, qual o seu objetivo mínimo em janeiro, tendo em conta que Edgar Silva deixou a fasquia no nível mais baixo de sempre?
Eu não estou aqui para me candidatar a percentagens eleitorais, estou aqui para me candidatar a Presidente da República e trago ideias, uma visão, um projecto que quero que faça caminho e que vença na sociedade.
É nisso que estou empenhado, em fazer a campanha pela positiva, que evite as disputas estéreis, que traga para cima da mesa o que são os problemas nacionais, e a forma que entendo de os ultrapassar a partir do exercício do cargo de Presidente da República. Não é Governo, mas tem um conjunto de poderes que a Constituição lhe atribui que pesam no curso da vida nacional. E eu quero, a partir do exercício desses poderes, mostrar não apenas que me identifico com as dificuldades que tanta gente comum hoje sente em Portugal, mas sobretudo sinto que é possível superar essas dificuldades.