O megaprocesso judicial “Operação Marquês” começou em 2013, com a investigação pelo Ministério Público (MP). Na passada sexta-feira foi finalmente encerrada a fase de instrução. Mas o MP vai recorrer para o Tribunal da Relação. E depois, provavelmente, haverá julgamento, que não será rápido. Há quem preveja que o processo só chegue ao fim lá para 2036. Uma justiça tão lenta não é justiça.
No século XIX e, menos, no séc. XX português os poderosos – pelo título nobiliárquico, o dinheiro, a posição social, a capacidade de influenciar polícias e magistrados, etc. – conseguiam frequentemente não ser incomodados pela justiça, que estava organizada sobretudo para julgar alegados crimes de gente pobre, sem influência social ou política. Já no corrente século, a justiça portuguesa começou a envolver pessoas altamente colocadas na sociedade e no Estado, tornando-se mais democrática. O antigo primeiro-ministro Sócrates foi preso em 2014, por exemplo.
Mas a decisão do juiz de instrução Ivo Rosa revela os limites dessa viragem. Se a Relação confirmar aquela decisão, dos 28 acusados só cinco irão a julgamento. E a justificação do juiz para deitar abaixo quase todas as acusações do MP tem sobretudo a ver com alegadas falhas processuais, como prescrições, e, na prática, com a recusa de validar provas indiretas em matéria de corrupção.
As normas processuais devem ser respeitadas. Mas é chocante que o juiz tenha considerado indício de corrupção o facto, não desmentido, de milhões de euros terem circulado, entre bancos no estrangeiro nomeadamente, acabando em inúmeras entregas a J. Sócrates em sacos de notas. No entanto, no entender do juiz Ivo Rosa não será por corrupção que Sócrates deve ser julgado. Ou seja, Sócrates foi corrompido, mas sobre ele não recairá por isso qualquer sanção, se a Relação não alterar neste ponto a decisão instrutória daquele juiz.
Claro que uma decisão tão esdrúxula como esta não seria possível se o Governo e os deputados já tivessem legislado sobre o enriquecimento ilícito, que aqui referi há dias. O PS opõe-se a legislar sobre esse crime potencial, alegando que as duas propostas já feitas eram inconstitucionais – o que se confirmou. Não parece exagero colocar a hipótese de os dois partidos do “centrão” dos interesses, PS e PSD, terem ficado agradados com os chumbos do Tribunal Constitucional (TC); há mesmo quem diga que foram aprovadas leis que, à partida, se sabia que não passariam no TC por causa da inversão do ónus da prova, que é inconstitucional. Os partidos rejeitaram outras propostas, de consagrados advogados, que respeitavam a constituição. Só pode concluir-se que o ataque à corrupção é uma mera conversa de propaganda. Não há vontade política nos maiores partidos para a combater a sério.
Os políticos e em especial os governantes e os deputados também são moralmente responsáveis pela escassez de meios humanos e materiais a que juízes e magistrados do MP têm acesso. A começar com a escassez desses juízes e magistrados. Faltam consultores especializados em informática e em crimes “de colarinho branco”, como os de corrupção, por vezes de grande complexidade financeira. Não há dinheiro, dizem. Não é verdade: há dinheiro para outras finalidades menos imperativas. A justiça é o núcleo central do Estado. Sem ela a funcionar com um mínimo de rapidez e eficácia o Estado perde legitimidade.
E assim regressamos a uma justiça de classe. Os poderosos têm meios de defesa que não têm os pobres. E o prolongamento dos processos não os afeta como afeta as classes baixas. É um Estado sem ética. Num artigo no “Público”, antes de conhecida a decisão do juiz Ivo Rosa, escreveu Rui Tavares: “Nunca nada é motivo de exame de consciência para ele (Sócrates), tudo sempre é motivo de cabalas e assassinatos de carácter, incluindo naquilo que ele próprio admite, como a utilização de dinheiro vivo em quantidades avultadíssimas ou o viver, como ex-governante, à conta de ‘empréstimos’ secretos de um amigo empresário”.
Não confundo direito com moral, que são esferas distintas embora relacionadas. Mas é dramática a crescente falta de ética na sociedade e no Estado em Portugal.