"Temos obrigação de imprimir as mudanças que sejam necessárias" em matéria de incêndios
28-09-2022 - 07:50
 • Celso Paiva Sol

Secretária de Estado da Proteção Civil afirma ser "extemporâneo dizer que houve descoordenação no combate aos incêndios". Patrícia Gaspar admite pensar num novo modelo de organização e não tem razões para pensar que os bombeiros deixem de cumprir a lei.

A secretária de Estado da Proteção Civil garante independência e transparência na avaliação dos grandes incêndios deste ano e considera que é dever do Governo fazer correções à reforma lançada depois de 2017.

Em entrevista à Renascença, Patrícia Gaspar diz que a opinião dos peritos será aproveitada para avaliar a própria reforma, embora não possa pôr em causa tudo o que já foi feito nos últimos cinco anos.

Dos especialistas convidados, e das entidades públicas que vão analisar a época de incêndios no Grupo das Lições Aprendidas, a secretária de Estado diz que espera a verdade. Mas, até que exista esse tipo de avaliação, a governante diz que é extemporâneo dizer que houve descoordenação no combate.

Nesta entrevista, a mais recente de uma série que a Renascença publica sobre os incêndios deste ano, Patrícia Gaspar também comenta as divergências com a Liga dos Bombeiros.

Admite pensar num novo modelo de organização dos bombeiros - embora não se comprometa com a criação de um comando nacional de bombeiros - e diz que não tem razões para pensar que os voluntários deixem de cumprir a lei.

Desde o ano trágico de 2017 que os números dos incêndios não eram tão elevados. Façamos as contas que fizermos, é uma evidência em todos os parâmetros de análise. Não foi um ano fácil.

O ano ainda não acabou. Sabemos pela experiência dos últimos anos que outubro e novembro podem ser meses complicados do ponto de vista meteorológico. Portanto, eu diria que ainda não é altura para balanços, talvez só para um ponto de situação.

E nesse sentido, até hoje temos cerca de 10 mil incêndios, e um total de 110 mil hectares de área ardida. As ocorrências mantêm uma tendência decrescente face à média dos últimos anos, mas a área ardida teve de facto um aumento significativo.

E porquê? É algo que se verifica na maior parte dos países da União Europeia, sobretudo na bacia do Mediterrâneo. Nós temos condições meteorológicas cada vez mais complexas, temos uma severidade meteorológica muito acentuada. Estamos perante uma realidade cada vez mais distinta da que tínhamos há dez ou 20 anos. Hoje em dia existem incêndios inextinguíveis.

Mas não é só uma questão de números. Este ano vimos o fogo a ameaçar povoações, e até o sobressalto das autoridades.

Sem dúvida. Uma coisa são as estatísticas, outra é a perceção de quem passa por situações como as da Serra da Estrela, Ourém, ou até o Algarve. As pessoas ficam com uma imagem de tragédia, uma imagem de grande desespero.

Tivemos incêndios que deflagraram em áreas periurbanas, o que provoca uma pressão enorme nas comunidades, nas pessoas, porque veem obviamente o seu património em risco. Isto causa desespero a todos.

E a somar a esse contexto de severidade meteorológica, não houve também alguma descoordenação no combate?

Estamos a falar de operações de enorme complexidade, que colocaram desafios muito expressivos a quem está no terreno, e a quem tem que comandar estas operações. São milhares de operacionais envolvidos em diferentes momentos, e comandar uma operação desta dimensão é efetivamente muito difícil.

Acho que é perfeitamente extemporâneo fazer reflexões ou conjeturas sobre se houve ou não descoordenação. Já percebemos que houve momentos muito difíceis, mas também já se sabe que o Governo desencadeou um processo de avaliação global aos incêndios mais complexos deste ano. Foi criado um comité de peritos independentes vindos da academia, da ciência, pessoas que há muitos anos estudam estas matérias, não só dos incêndios rurais, mas também da questão do ordenamento florestal, da meteorologia, e das alterações climáticas.

Eu estou absolutamente convencida que desta avaliação nós vamos ter, aí sim, uma ideia mais concreta daquilo que efetivamente possa não ter corrido tão bem.

O que é que o Governo espera desses peritos? Que tipo de informação?

O Governo espera uma apreciação honesta, correta, imparcial e técnica daquilo que aconteceu. Não estamos à procura de culpados, estamos à procura de soluções, de termos na mão aquilo que nos possa apontar um caminho futuro.

A transformação a que estamos a assistir no clima, corre mais rápido do que a transformação que conseguimos implementar no sistema.

E admite que essa nova avaliação possa alterar a reforma lançada há cinco anos?

Terá que ajustar, se for esse o caminho. Sem dúvida nenhuma. Aliás, não interessaria a ninguém fazer um processo de avaliação, se no fim não fossem corrigidas as situações apontadas.

Há cinco anos definimos um modelo que tem uma janela temporal de pelo menos dez anos, e sabemos que nesse período de tempo há fatores externos que vão seguramente alterar-se e, portanto, a chave para o sucesso reside nesta monitorização e na honestidade e na transparência de perceber o que é preciso corrigir.

Nós não queremos um dossiê feito em gabinete muito bonitinho, com um papel fantástico em que tudo aparenta estar bem, mas que depois não tenha colagem com a realidade.

Nos últimos dias realizou-se a primeira reunião entre os peritos e as entidades que compõem o sistema. Com que impressões ficou sobre o que pode vir a ser ajustado?

O trabalho ainda agora começou, mas nessa reunião fiquei com duas perceções. Uma, que existe um grande alinhamento entre as entidades do sistema e este comité de peritos, e a outra, que existe uma enorme vontade de contribuir para o sistema. Todos, sem exceção, revelaram uma enorme sintonia, e um enorme sentido de Estado e de compromisso com a missão que lhes foi atribuída.

E é uma missão muito importante. Olhar para este conjunto de incêndios que em 2022 assumiram uma dimensão de maior complexidade, trabalhar com as entidades que estiveram no terreno, e tentar chegar a conclusões. E esta é a avaliação que nós esperamos.

Com um compromisso: em função daquilo que venha a ser transmitido ao Governo por este comité, nós teremos a obrigação e o dever de revisitar o sistema e imprimir as mudanças que sejam necessárias.

Claro que cinco anos não são as décadas que são necessárias para uma reforma deste género, mas sempre são cinco anos. O que é que 2022 nos diz da reforma em curso há cinco anos?

2022 diz-nos que muita coisa já mudou, mas também nos diz que ainda só estamos nos primeiros cinco anos.

Obviamente que para quem assiste de fora, cinco anos já era tempo de ser diferente. Mas já está a ser diferente. 2022 não pode contaminar o trabalho que se tem feito até agora. Tem é que servir para parar, refletir e ponderar como é que vamos ajustar daqui para a frente.

O que é que já fizemos: Temos vindo a robustecer o dispositivo de resposta operacional. Temos uma diretiva única que junta a prevenção e o combate, para que as duas dimensões andem mão na mão. Temos um sistema de vigilância, um sistema de fiscalização mais robusto. Temos cada vez menos ocorrências, e menos complexas. Temos os projetos Aldeia Segura, Pessoas Seguras, e o Condomínio da Aldeia, que aumentaram a resiliência das populações. Portanto, eu diria que estamos longe de poder dizer que está tudo feito, mas é muito injusto dizer que nada foi feito nestes cinco anos.

Mas na organização da floresta, na preparação da floresta, os cinco anos quase não se notaram.

Eu diria que para o trabalho imenso que temos que fazer em termos de ordenamento florestal, cinco anos, de facto, não é muito. É pouco. Nós precisamos de transformar o país, e estamos a fazê-lo.

Estamos a criar as zonas de Intervenção de Paisagem, estamos a criar estes condomínios de aldeia, estamos a promover cada vez mais a limpeza dos terrenos, a abertura de faixas, a consolidação das faixas.

Temos excelentes exemplos de boas práticas por parte das entidades que são gestoras das infraestruturas, como é o caso da REN, por exemplo, da própria Infraestruturas de Portugal.

Mas é uma mudança de paradigma que tem que entrar nas nossas rotinas. Por exemplo, fala-se muito na questão das limpezas, mas a limpeza que fizemos este ano tem que se repetir no próximo ano.

No ano passado, todo o sistema composto pelas várias entidades do Estado colocou nesta área 316 milhões de euros. Desse dinheiro, 46% foram dedicados à prevenção, e 54% dedicados ao combate.

Nós nunca vamos poder deixar de investir no combate. O que estamos a fazer é tentar aumentar o rácio da prevenção para que isto fique cada vez mais equilibrado. Há uns anos esta divisão era 80-20.

Mas tem que haver uma forma de avaliar esta reforma. Usando uma expressão mais popular: quando as coisas correm bem é por mérito do sistema, quando correm mal a culpa é da seca, das alterações climáticas, das ondas de calor, ou até do comportamento dos portugueses. Assim, torna-se difícil escrutinar o trabalho de todas estas entidades.

O sistema é permanentemente avaliado, e eu acho que a melhor prova de que estamos a avaliar o sistema é o processo de avaliação que desencadeamos este ano.

Em todos os verões há períodos complexos, e de 2017 até agora, os sucessivos verões têm tido balanços positivos. Este ano sim, a coisa foi acima do normal, foi além do normal. Estes 10% de incêndios que não conseguimos agarrar este ano no ataque inicial, são os 10% em que nos temos que focar.

Mas esta é uma realidade que não acontece só aqui, há países que durante muitos anos foram exemplos do que melhor se faz na área da proteção civil, e especificamente na questão dos incêndios, que têm muitos meios, onde está a acontecer o mesmo. A França, por exemplo, este ano teve incêndios que duraram vários dias, tiveram que evacuar milhares de pessoas, e recorreu ao Mecanismo Europeu de Proteção Civil – coisa que era raro acontecer no passado.

Portanto, as alterações climáticas estão a evoluir a um ritmo muito superior àquele em que é humanamente possível transformar o sistema. Temos que ir respondendo da melhor forma possível e com os meios que temos, nunca perdendo o foco na meta que foi definida há cinco anos. Eu diria que temos que parar, olhar, avaliar, recuperar o que for para recuperar, reajustar, o que for preciso reajustar.

O que não podemos é voltar a pôr em causa todo o sistema que temos. Isso não pode acontecer.

Queria trazer para esta nossa conversa também o comportamento dos portugueses na floresta. O país esteve várias semanas em situação de alerta, e até de contingência, e mesmo assim houve um elevado número de ignições. O que é que está a falhar na mensagem? Já se perdeu o efeito de 2017?

Discutir esta questão é um terreno muito complexo. Genericamente, eu acredito que há uma mudança brutal no comportamento dos portugueses, e na forma como convivem com o espaço rural e com o espaço florestal. E a prova disso é a redução do número de incêndios, que nos últimos anos tem acontecido de forma consistente. É um indicador importante. Este ano tivemos menos 27% de incêndios face à média dos últimos 10 anos.

Temos apostado nas campanhas de sensibilização, temos uma presença muito importante da GNR no terreno, que só este ano fez ações de sensibilização junto de 72 mil portugueses.

Mas ainda temos 27% de incêndios provocados de forma intencional, e quem o faz está muito imune às campanhas de sensibilização. Esse é um trabalho de longo prazo, que se for bem feito irá dar frutos.

Eu não acredito que o efeito de 2017 tenha passado, mas há de facto ainda um longo caminho de consciencialização, um caminho de pedagogia, de ensino – que aliás já é feito nas escolas.

Entretanto, foi calendarizada mais uma etapa da Lei Orgânica da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil. A partir de janeiro de 2023 vão finalmente entrar ao serviço os Comandos sub-regionais. O que é que vai mudar na proteção e socorro?

Gostava de deixar aqui uma primeira garantia: para os portugueses e para o socorro não vai haver alteração nenhuma. Ou seja, tudo aquilo que é a resposta operacional que os portugueses sentem quando precisam de ajuda, vai manter-se tudo na mesma.

A grande alteração é a implementação do último patamar previsto na Lei Orgânica da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, que data de 2019, que é um modelo territorial diferente. Acaba com a divisão distrital, e passa a privilegiar as comunidades intermunicipais, que é a divisão territorial do país que agora está em vigor. Deixamos de ter 18 comandos distritais de operações de socorro, e passamos a ter 23 comandos sub-regionais.

Porque é que isto ainda não tinha sido feito? Porque não o podíamos fazer durante uma pandemia. Não podíamos. É óbvio que isto requer um atempado processo de planeamento, de preparação para terminar com a lógica do distrito e passarmos à lógica das sub-regiões, não só em relação às infraestruturas físicas, mas sobretudo em relação aos fluxos de informação, da organização dos sistemas de comunicações, de articulação entre os diferentes parceiros. Mas, do ponto de vista do terreno, tudo se irá processar da mesma forma.

Por falar em parceiros, a Liga dos Bombeiros já disse que não concorda com essa divisão, ou melhor, que só a aceita mediante condições. É possível que os bombeiros se recusem a participar no sistema de proteção e socorro, tenha a organização que tiver?

É preciso fazer uma distinção clara para que os portugueses percebam do que é que estamos a falar. Por um lado, existe a Liga dos Bombeiros Portugueses, que é uma associação representativa do setor, que tem sido um interlocutor privilegiado do Governo. E temos uma outra dimensão, que é a dimensão operacional da resposta dos corpos de bombeiros.

Os corpos de bombeiros respeitam, sempre respeitaram, e eu estou fortemente convencida que continuarão a respeitar as regras e as leis que estão em vigor. A forma como a Autoridade Nacional de Emergência de Proteção Civil se articula com os corpos de bombeiros não advém de um acordo de cavalheiros. Advém de procedimentos que estão perfeitamente plasmados em diferentes diplomas legais, que são aqueles que estão em vigor.

Obviamente que a Liga dos Bombeiros é uma entidade privada que tem todo o direito de ajustar a sua organização conforme achar mais benéfico, tendo em conta aquele que é o panorama da organização geral do país em matéria de proteção e socorro.

A Liga reivindica um comando nacional de bombeiros. Sobre isto, nós temos uma proposta que nos foi formalmente entregue pela Liga dos Bombeiros Portugueses e que temos toda a abertura para discutir. Não achamos é que isso possa ser feito nesta fase, ainda em plena época de incêndios, não sabemos como vão correr os meses de outubro e novembro. Mexer naquela que é a organização dos corpos de bombeiros requer muito diálogo, requer muito estudo, requer muita comunicação com os diferentes parceiros do setor, incluindo as câmaras municipais, e com os próprios corpos de bombeiros.

Eu diria que temos a porta aberta para, com calma, começar a olhar para aquilo que é a organização dos bombeiros em Portugal. E nós também achamos que tem que ser revista. Aliás, ela consta da nossa lista de prioridades desde 2019, quando assumimos que era preciso revisitar o modelo de organização e o modelo de financiamento dos corpos de bombeiros.

Essa abertura de porta significa que os bombeiros podem mesmo vir a ter esse Comando Nacional, e com ele a responsabilidade pela gestão operacional das ocorrências?

Nós estamos a falar de um elefante, e este elefante tem que ser dissecado, salvo seja, para conseguirmos ver as diferentes dimensões.

A Liga está, desde sempre, sentada à mesa nos momentos em que se decide cada época de incêndios. Noutra dimensão, estão as funções operacionais. Os corpos de bombeiros atuam sobretudo no terreno, e os bombeiros estão presentes em todas as ocorrências de proteção e socorro. Obviamente na lógica de comando que têm, que é o comando local, todos os corpos são comandados por bombeiros, cada corpo tem um comandante.

A reivindicação da Liga é que seja criado um comando de bombeiros, que é uma organização que não é da Liga. Seria uma outra organização, nas palavras da Liga, semelhante à GNR, à PSP, às Forças Armadas, ou seja, quer ter um comando autónomo de bombeiros.

E é sobre isso que nós temos que nos debruçar. Essa é a abertura de que falava. Essa é a proposta que temos em cima da mesa, e que tem que ser discutida. Tem que ser discutida com transparência, em diálogo com a Liga, com os bombeiros, com as diferentes associações do setor. Desculpe a expressão, mas esta questão não pode ser decidida do pé pra mão. Quando falamos de organização, quando falamos de financiamento dos corpos, temos várias entidades que partilham responsabilidades: o Estado, através dos ministérios da Administração Interna e da Saúde, as autarquias, e as próprias associações humanitárias que detêm os corpos de bombeiros voluntários.

Todo o modelo tem que ser pensado de forma integral, de forma a termos um sistema que no futuro possa responder com capacitação e com eficácia, aos grandes desafios que vamos ter. E os corpos de bombeiros são o principal agente de proteção civil, que, com as leis de hoje, não estão em nada diminuídos face aos restantes parceiros, mesmo não tendo ainda um comando autónomo.