Carta de Ovar: no centro do epicentro
23-03-2020 - 09:45
 • Crónica de Paulo Silva

Paulo escreve ao amigo Zé, do lado de lá da cerca: "Escolho acreditar que entrámos a pés juntos mais cedo e sairemos menos magoados e mais ligeiros do que os outros. Porque hoje tudo o que temos para escolher é se cremos luz ou treva. O resto deixamos que nos digam".

É do "centro do epicentro" do cerco que Paulo Silva escreve uma carta ao amigo Zé, que partilha com a Renascença, desde Ovar. A cidade está isolada do mundo, mas Paulo, que tem mundo, espera pelo momento do reencontro. Pela oportunidade de isolar Zé entre os braços.


Meu caro Zé

Hoje é Domingo. De uma forma um tanto assustadora, fico alegre por manter a contagem dos dias, por não me perder – ainda - nas horas iguais que nos marcam a vida deste tempo. Espero que por aí estejam todos conforme me vais dizendo. Não que duvide de ti, fique já isto claro, mas sempre nos julgamos por nós próprios e bem sei quantas vezes digo “está tudo bem” e o estômago é um nó até à garganta. Se calhar isso era outro planeta, outra dimensão, outra Era, em que as certezas eram tantas, quase todas, e as coisas eram nossas e estariam lá todas as manhãs quando acordássemos. Passou ainda pouco tempo, Zé. Tão pouco e já é neste mar de nostalgias que me encontras.

Chegam-nos notícias de que houve fartos pequenos-almoços, cheios de bolos com creme e massa folhada – sabes lá o que me apetecia um éclair e eu nem gosto de éclaires – ali por Válega. Pastelarias, que hoje são todas padarias, à pinha, com pirralhos a correr por entre as mesas. Da minha varanda no centro do epicentro, não os posso ver. Vislumbro apenas um canto de uma rua deserta e tomo esse ínfimo por quase tudo. Estou errado, Zé. Dramaticamente errado. Puerilmente errado.

É provável que seja só a minha maneira de alimentar a esperança de que estamos no caminho para dar a volta. Mas as notícias chegam-me e eu sinto-me sozinho. Mentira! Sinto-me irritado primeiro, indignado depois e, por fim, invejoso. Quero um croissant misto do Jáfumega, a derreter-se em banha – a minha sogra jura que é com banha que os fazem – recheado de quilos de fiambre de porco, do mais barato, e queijo de barra. Sem prensar, para não estragar. Ainda a semana passada havia dois deles cá em casa. Não toquei num que fosse. Hoje apetecem-me. E passou tão pouco tempo, Zé.

Em proporção, parece que temos dez vezes mais casos do que o resto do país. Linearmente, serão dez vezes mais mortos e a minha mente recusa-se a fazer a conta. Opto por ver todas as noites o Malheiro, olhos cada vez mais fundos, dar-nos a contabilidade; escolho acreditar que entrámos a pés juntos mais cedo e sairemos menos magoados e mais ligeiros do que os outros. Porque hoje tudo o que temos para escolher é se cremos luz ou treva. O resto deixamos que nos digam.

Despreocupa-te, Zé. Estamos rijos, apesar desta tarde que me escorre para a folha poder parecer-te que não, e prontos para qualquer guerra. Cientes do tempo que falta e do quanto pagaremos por ele. E ansiosos, tão ansiosos, pelos dias lavados e frescos que nos esperam. Se de todos alguém entenderia, és tu Zé: we will pay the price, but we will not count the cost. Seremos melhores.

Até ao Domingo em que nos abraçarmos.

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