A lei que legaliza a eutanásia chega ao Presidente da República esta semana. A partir daí, Marcelo Rebelo de Sousa tem 8 dias para decidir se pede apreciação ao Tribunal Constitucional e 20 dias para tomar uma decisão política de promulgação ou veto.
Um grupo que já vai em mais de 30 professores de Direito juntou-se ao movimento Stop Eutanásia, defendendo que que esta prática viola a Constituição da República Portuguesa. A campanha tem o título "Eutanásia? 'Aa vida humana é inviolável'" remete para o artigo 24.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa.
Um dos signatários é o catedrático Pedro Romano Martinez, antigo diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que, em entrevista à Renascença, defende que a lei seja apreciada pelo Tribunal Constitucional e lembra que o Presidente da República não é o único a pedir essa apreciação. O recurso ao TC pode ser pedido, mas já com a lei em vigor, por um mínimo de 23 deputados ou por qualquer cidadão perante um caso concreto.
Pedro Romano Martinez alerta para que a legalização da eutanásia é uma janela que pode pôr em causa outros valores sociais e questiona se alguém em sofrimento tem verdadeira liberdade para decidir.
É um dos apoiantes desta campanha para que seja verificada a constitucionalidade da lei que legaliza a eutanásia. Porque é que deve ser feita essa verificação?
Tendo em conta o princípio que vigora entre nós, o artigo 24º da Constituição, número 1, da inviolabilidade da vida humana, parece-nos que essa inviolabilidade não tem exceções e, por isso mesmo, não poderia ser por vontade do próprio essa violação da vida humana.
Tendo em conta esse entendimento, então também o aborto não devia ser inconstitucional? O que é que explica que não seja?
O aborto, nalgumas circunstâncias, tem parâmetros distintos, tendo em conta que poderá haver motivos de saúde da mãe e haver outros motivos. Naqueles casos em que seja pelo período determinado, sem motivos justificativos da saúde da mãe ou outros, na minha perspetiva, também haveria inconstitucionalidade.
Então, no caso da eutanásia, tendo em conta o que diz, na sua opinião estamos perante uma inconstitucionalidade mais clara?
Sim. No caso da eutanásia é mais claro do que no do aborto, sem prejuízo de, no meu entendimento, o aborto também se incluir na violação do artigo 24º da Constituição
Espera que o Presidente da República envie de facto esta lei para o Tribunal Constitucional?
Não sei prever. Marcelo Rebelo de Sousa tem um conhecimento Direito Constitucional que não é comparável ao de outros Presidentes que o antecederam e, por isso, fará um juízo muito claro quanto a esta questão.
Mas consideraria que seria uma medida, pelo menos, prudente?
Quem sou eu para aconselhar o Presidente da República?! Não emito conselhos. Contudo, creio que seria muito conveniente que o Tribunal Constitucional apreciasse a constitucionalidade de eutanásia. Mas, mesmo que o Presidente não envie, isso não está fora de possibilidade de apreciação por parte do Tribunal Constitucional, noutro momento e com base noutra fundamentação. Ou seja, não é só o Presidente da República que pode pedir ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade de uma determinada solução legislativa. Se o Presidente da República considerar que não é oportuno, haverá outras hipóteses, mas parecer-me-ia bom que a questão fosse apreciada.
As outras hipóteses são fiscalização sucessiva e não preventiva, ou seja, se não for pedida fiscalização preventiva pode haver uma decisão do TC posterior à entrada em vigor da lei e até à prática de casos de eutanásia...
Exatamente, até perante casos concretos, perante uma situação qualquer, sempre se pode suscitar uma apreciação da constitucionalidade.
Para além da inconstitucionalidade que este grupo invoca, qual é o seu entendimento do impacto que uma lei como esta pode ter em termos sociais e legislativos? Ou seja, esta lei abre uma porta que pode abrir mais portas?
A eutanásia, ao ser permitida, abriria a porta para outras situações e há também que ter em conta o mecanismo que é determinado de decisão. Até que ponto podemos aferir que uma pessoa que está em sofrimento está em condições para decidir acerca da sua vida? Isto seria uma porta para as pessoas poderem começar a decidir sobre outros aspetos que, em princípio, não estão na sua disponibilidade. Esta questão de tomar uma decisão em que não sabemos em que condições psíquicas é que está a pessoa que vai emitir a declaração de vontade é difícil de avaliar
Bem sei que, muitas vezes, é preciso tomar esse tipo de decisões, nomeadamente nos atos médicos há decisões difíceis. Mas esta é uma decisão meditada, não é perante um caso urgente, é isso que importa e, por isso, está a abrir-se aqui uma janela para uma multiplicidade de outras hipóteses em que cada um decidirá acerca de muitos aspetos da sua vida, o que pode pôr em causa alguns dos valores da nossa sociedade.
Tais como?
Valores de preservação da vida, de integridade física. O problema será e porque não deixarmos de ter duas mãos e dois braços... Temos uma determinada estrutura de vida assente em algo que não está na nossa liberdade de decisão. Esta ideia da eutanásia não é isenta de uma determinada conceção política.
Já que fala em conceção política, os defensores da eutanásia argumentam com a questão da liberdade e da dignidade. O que é que responde a esses argumentos?
A liberdade e a dignidade, particularmente para quem está numa situação de sofrimento, implicam uma decisão, uma declaração e vontade que é tomada sob uma determinada coação, uma determinada pressão e isso não corresponde a uma verdadeira liberdade. Ou seja, a liberdade é de quem tem plena consciência, de quem pode ter capacidade para perceber quais são as várias hipóteses e não de quem está numa situação de sofrimento a dizer "eu agora não quero sofrer e vou decidir pôr termo à vida"
Dizer que as pessoas têm liberdade de dispor da sua vida é algo que parece contrariar a própria dignidade humana.
Nessa decisão, quando fala em coação ...
Não estou a dizer que seja coação externa, ainda que possa haver coação externa de alguns familiares que podem preferir que aquela pessoa que está em sofrimento, que está a dar um encargo, que tome essa decisão. Pode haver um certo condicionamento da decisão não só pelo sofrimento que tem, mas também pelo peso, o fardo que está a ser para os mais próximos e, por isso também, a eutanásia acaba por ser uma forma de certas pessoas que têm a seu cargo os que estão em sofrimento não arcarem com esse peso, com esse fardo do sofrimento. Pode haver aqui alguma coação, não no sentido de colocar o outro entre a espada e a parede, mas de a pessoa ter menor liberdade na sua decisão.