Há na Igreja uma congregação religiosa que foi pioneira no acolhimento das vítimas de violência doméstica. As Irmãs Adoradoras criaram a primeira casa-abrigo em Portugal, em 1995. Hoje, já não estão à frente do projeto, que deixaram entregue aos técnicos que ali formaram, mas continuam a apoiar mulheres em situação de vulnerabilidade.
Em Lisboa, as irmãs adoradoras têm o Lar Jorbalán, uma comunidade de inserção de jovens, na maioria africanas, que a segurança social lhes reencaminha. Em Coimbra, com o projeto "Ergue-te", tentam resgatar mulheres da prostituição. No plano mundial, estão agora especialmente atentas ao tráfico humano para explotação sexual e/ou laboral.
A Renascença conversou com Júlia Bacelar, das irmãs adoradoras, neste momento em que se regista um número crescente de mulheres assassinadas às mãos de maridos, ex-companheiros ou familiares. Júlia Bacelar defende que a Igreja devia prestar mais atenção à violência doméstica, que considera estar a atingir níveis alarmantes em Portugal, e comenta, ainda, as recentes declarações do Papa sobre os abusos de freiras por parte de responsáveis da Igreja.
Como é que tem acompanhado os dados da violência doméstica em Portugal?
É alarmante. Já no ano passado foi mau, pior do que rm 2017, e agora começámos o ano já com dez casos só num mês: nove mulheres e uma criança. Nós, instituições de acolhimento que trabalhamos com mulheres, estamos a tentar fazer uma reflexão para determinar qual é a causa. Porque alguma causa tem que haver, na medida em que está em aumento, não é um problema que esteja a diminuir. Eu trabalhei numa casa-abrigo. Acho que em Portugal, em termos legislativos, as leis são adequadas, os recursos suficientes. O trabalho que se tem feito, em termos de sensibilização, também. Portanto, o que é que está a falhar? Não sabemos. Mas, realmente, é uma coisa assustadora, sobretudo por ser num ambiente e num país tão pequeno. Dez casos num mês é uma coisa que brada aos céus.
A Congregação das Irmãs Adoradoras dedica-se ao apoio das mulheres em situação de vulnerabilidade e, em Portugal, já tiveram projetos de acolhimento de vítimas de violência doméstica. Ainda os mantêm?
Fomos a primeira casa-abrigo que se abriu em Portugal, em 1995, em Évora. Naquela altura, não havia legislação nem recursos. Uma irmã começou a acolher mulheres que batiam à porta e... Pronto! Posteriormente, veio a legislação, os recursos e tudo mais, mas nós fomos as pioneiras. Estivemos lá até 2015. Entretanto, por falta de irmãs, porque estamos com poucas irmãs, tínhamos uma equipa técnica muito interessante, que se formou nos nossos princípios, na nossa filosofia e maneira de intervir, e esses elementos criaram uma associação e continuam a ter a casa de acolhimento tal e qual como nós tínhamos.
Portanto, o projeto mantém-se, embora não com as com as Irmãs Adoradoras...
Não com as irmãs. Mas eu vou lá de vez em quando e mantemos uma relação de proximidade, de partilhar, no dia-a-dia, os valores, os princípios de intervenção. Na nossa filosofia de irmãs adoradoras, as mulheres vêm para as nossas casas para iniciar um processo de mudança, de crescimento, de empoderamento, de mudar a sua vida. É um projeto novo de vida e queremos que a nova equipa que leva agora o projeto de Évora continue nesta linha, ou seja, não se trata de acolher as mulheres como fosse uma pensão. Claro que as mulheres estão ali protegidas, é a primeira coisa, mas, para além disso, não podem estar ali meio presas, em fuga permanente de um agressor.
Têm de ser ajudadas a dar a volta?
Claro. Naquela casa, e estamos a falar do Alentejo, sempre demos prioridade às mulheres que tinham elevado risco e sempre vimos que o problema mais grave estaria nas que são mais velhas. Naquela época, ainda não se falava na avaliação de risco, mas nós já percebíamos que uma mulher do meio rural, com 40 anos, com um agressor muito próximo…
... muitas vezes em situação de dependência financeira do marido...
Exatamente. O facto de já estarem casadas, ou juntas, durante 20 ou mais anos, cria nelas uma dependência também psicológica. Diziam muitas vezes "sem esta pessoa com quem eu me casei não sei viver". Por isso, com as mais velhas é muito difícil, na medida que elas têm ali uma certa fragilidade. Aos 45 anos ou 50, perguntam "o que é que vou fazer para a frente? Arranjar trabalho é difícil. Como é que eu agora fico sem os filhos, sem os netos, sem a minha terra, as amigas?". É uma mudança muito radical.
Com as mais novas é mais fácil. A lei só permite que estejam em casa-abrigo seis meses. Por isso, o que fizemos foi um novo protocolo com a Segurança Social e criámos um projeto que se chamava "Voar". Tínhamos os apartamentos de autonomia e com donativos que nos davam fomos conseguindo acompanhá-las mais dois anos. De forma que temos muitos casos de sucesso de raparigas, de mulheres vítimas de violência até aos 35 anos que, hoje em dia, constituíram novas famílias e têm uma vida autónoma na sociedade. Estão muito bem, mesmo.
O agravamento do quadro da violência doméstica pode levar-vos, de novo, a reavaliar mais respostas nesta área? Ou, agora, estão vocacionados para outro tipo de situações de vulnerabilidade que envolvem também as mulheres?
Pois... A congregação toma as suas decisões. Nós tivemos um Capítulo Geral, há uns 10 anos, onde começámos a analisar e a discernir sobre qual será a violência mais grave sobre a mulher a nível mundial. Trabalharmos em 27 países, fomos ver qual era o denominador comum da violência mais grave sobre a mulher e chegámos à conclusão de que era a exploração sexual, que, normalmente, está ligada ao tráfico de pessoas ou a outro tipo de crimes. Por isso, em todos os países do mundo, deu-se uma volta a todos os projetos e deixámos um bocado de lado a violência doméstica. Ficámos só em Espanha, com dois projetos, e com um aqui, mas, no resto do mundo, desde a Ásia até à América Latina, passando pela Europa, todos os nossos projetos trabalham, neste momento, com vítimas de tráfico de seres humanos, na linha de que são conduzidas à exploração sexual.
Também aí foi uma congregação pioneira nessa área?
Sim. Começámos no ano de 89 e, depois, já se conseguiu avançar com outros projetos e criar rede. Em 2000-2002, começou a alargar-se muito. Temos um projeto de referência, que foi dos primeiros que eu vi a nível europeu, que é o projeto "Esperança", em Madrid. É uma referência em termos nacionais, mas também em termos europeus.
Em Portugal, estão a trabalhar com que projetos?
Estamos a acompanhar este de Évora, que é de vítimas de violência, e temos esta casa em Lisboa que acolhe mulheres de uma “especial vulnerabilidade”, como diz a lei. São mulheres que vêm para Portugal, a maioria africanas, que estão em situação irregular e têm graves problemas de saúde com os filhos. Em Portugal, não têm rede familiar de suporte e não têm meios de sobrevivência. Então, a Segurança Social, normalmente, encaminha-as para o acolhimento. Isto é uma comunidade de inserção para mulheres vulneráveis, que abrange muitas violências. Não queremos estar a pôr um nome: se é traficada, se é maltratada...Seja o que for. Fazemos este trabalho com elas, temos grandes apoios e, por isso, o projeto tem tido muito êxito. Depois, temos o de Coimbra...
... que é o projeto "Ergue-te", ligado à prostituição...
Sim. Tem o atendimento e acompanhamento de mulheres em contextos de prostituição. Fazem trabalho de rua, trabalho de estrada, atendimento no próprio gabinete e dão apoio psicológico, jurídico, social e médico. A gente costuma dizer "está na prostituição", mas de facto, é a nossa convicção que ninguém está na prostituição porque quer. O que se pretende é ajudá-las a tomar consciência de que este não é um trabalho para a vida delas. Ajudá-las a que se consigam libertar e ter uma vida autónoma.
Todas estas situações - o tráfico de seres humanos, a prostituição, os maus tratos - revelam a forma como as mulheres continuam a ser vistas em boa parte do mundo. O Papa condenou, recentemente, esta violência contra as mulheres, incluindo também no seio da Igreja, admitindo que já houve casos de abuso de religiosas por parte de alguns padres. Isso surpreendeu-a?
Quando fiz uma formação, já nos anos 80, em Roma, um dos formadores contava muitas situações e casos que ele conhecia da América Latina. Eu, naquela altura, não liguei nada a isso, até porque pensei "bem, isto é na América Latina...", mas isso foi nos anos 80. Pessoalmente, não conheço casos.
Ia perguntar-lhe isso, se conhecia algum caso...
Concretamente, não conheço, mas vamos lendo nos meios de comunicação que há e, ultimamente, nos últimos meses, tem-se falado mais abertamente deste problema. O Papa, quando lhe perguntaram, disse "existiu, existe e continuará a existir".
Mas também disse que são casos que estão a ser punidos...
Punidos, sim, mas o que ele diz é que não é por um decreto, por um documento que ele faça que isto vai acabar. Estamos numa sociedade onde a exploração da mulher existe, a nível global. Não é em Portugal, não é só na América Latina. Dentro da Igreja, somos pessoas que estamos inseridas na sociedade e, de algum modo, o que acontece na sociedade repercute-se nas próprias congregações e na própria Igreja.
Acha que a Igreja devia ter uma voz mais ativa na condenação da violência contra as mulheres e, nomeadamente, agora, no caso português?
Penso que sim. Se calhar, já falaram, mas eu não tenho ouvido assim, claramente, os bispos a tomar uma posição neste sentido. Sim, de vez em quando, dizem, no meio de um discurso, há assim umas frases, mas, em termos da Conferência Episcopal, não me recordo de que haja tomadas de posição mesmo muito sérias.
Era importante que houvesse?
Acho que seria. A Igreja devia estar mais atenta. Sobretudo, os párocos no meio rural, onde as mulheres são muito maltratadas. Os sacerdotes deviam tomar consciência e, ao mesmo tempo, procurar meios de ajudar estas pessoas. Se não for a Igreja nestes meios, também ninguém lá vai, não é?
Na formação é uma coisa que nos dizem muito: que há um sítio a que as mulheres sempre recorrem: é o último banco da igreja, onde vão chorar e desabafar. Então, se os párocos estiverem muito atentos a isto, se calhar, conseguiríamos chegar às próprias vítimas.
Acho que seria uma mais valia, dado que há paróquias por todo lado, há religiosos por todo o lado, temos um trabalho capilar em termos mundiais. Se a vida religiosa, as igrejas locais tivessem conscientes deste problema, sensíveis a ele, penso que se conseguiria chegar às vítimas muito mais depressa do que os próprios governos, porque os governos têm os seus recursos, dinheiros, criam equipas, centros e outras coisas, mas, capilarmente, quem está mesmo, mesmo, mesmo próximo das populações são as paróquias e as congregações religiosas. Em África, por exemplo, as irmãs vão onde ninguém vai. Seria a forma de chegar mesmo, mesmo às próprias vítimas com mais facilidade.