A APAV entende que uma criança deve ser considerada vítima de violência doméstica quando é exposta ao crime e não apenas quando é o destinatário principal da violência exercida, mas criar um estatuto autónomo não é necessariamente a solução.
“Para nós, sempre foi essencial que a criança seja considerada uma vítima de violência doméstica. Não só, como é óbvio, quando é vítima e destinatário primeiro dessa violência, mas também quando é exposta a essa violência”, começa por dizer João Lázaro, presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.
“A nossa questão prende-se com haver uma falta de visão integrada do ponto de vista legislativo dos vários tipos de vítimas, dos vários tipos de direitos e de haver muitas vezes apenas a legislação do momento, do impulso, e que isso, em última análise, acaba por tornar menos operacional a lei”, acrescentou em entrevista à agência Lusa, a propósito dos 30 anos da associação que se assinalam nesta quinta-feira.
A Assembleia da República voltará a discutir o tema do estatuto de vítima autónoma de violência doméstica para as crianças expostas ao crime por via de uma petição pública, que já conta com mais de 26 mil assinaturas (apenas são necessárias quatro mil para a admissão no Parlamento).
A petição é subscrita pela presidente honorária, Manuela Eanes, e a atual presidente, Dulce Rocha, do Instituto de Apoio à Criança; pelo antigo ministro da Administração Interna Rui Pereira; e o advogado Garcia Pereira.
Conta ainda com a subscrição de várias associações, como a Associação Dignidade; Associação de familiares e amigos/as de Vítimas de femicídio – ACF, Associação Das Mulheres Contra A Violência, Mulheres De Braga, Associação Abraço ou a UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta.
Pensar nas necessidades da vítima
A discussão pode regressar menos de um ano passado sobre o chumbo, em dezembro passado, no Parlamento, de projetos de lei do Bloco de Esquerda e do PAN nesse sentido.
Já em maio deste ano o Parlamento voltou a debater o tema, a propósito da proposta do Governo para rever o regime jurídico de prevenção da violência doméstica, estando a matéria a ser trabalhada em sede de especialidade.
Se alguns partidos se batem pela criação de estatuto autónomo, a sua necessidade não parece evidente, entende João Lázaro, que defende outra abordagem.
“Para nós, é óbvio que a criança exposta deve ser protegida pela lei. Deve ser, de um ponto de vista da lei que proteja as vítimas de crime e não de começarmos a colecionar estatutos ou a fazermos anexos de estatutos ou ‘puxadinhos’ de estatutos”, defende João Lázaro.
Na opinião do presidente da APAV, é preciso “pensar nas vítimas de crime face às suas necessidades conforme o tipo de crime do ponto de vista mais integrado, e até mais holístico, do sistema de justiça”.
Mais do que novas leis, João Lázaro diz que é preciso “uma clarificação” das que existem, referindo que estão consagradas na legislação “soluções que estão muito longe de serem praticáveis”, com “muitos buracos” e omissões de direitos, o que faz parecer que “ninguém se parece ter preocupado muito com a sua operacionalização”.
“Há uma grande confusão que claramente não beneficia uma aplicação eficaz, clara, transparente da lei de proteção e garantia dos direitos para os quais foram pensadas”, disse.
Mais do que legislação avulsa, que João Lázaro entende que pode ser contraproducente, e análises caso a caso de direitos das vítimas consoante o crime, a APAV insiste na necessidade de um integrado, transposto para o Estatuto das Vítimas de Crime, que deve ser revisto e melhorado, para garantir de forma imediata direitos que a associação considera essenciais e que ainda não estão assegurados, como o direito à informação.
“O direito à informação é um direito basilar e chave de cada vítima poder aceder a todos os outros direitos. Estes direitos de informação e de acesso a serviços de apoio são fundamentais para as pessoas poderem ser capacitadas, poderem ter ajuda e poderem exercer os seus direitos. Nós acreditamos que a qualidade de justiça também se mede pela forma como se reconhece e trata as vítimas de crime”, diz.
As condições de segurança do país e o empenho das forças de segurança e do Ministério Público nesse objetivo permite, na opinião de João Lázaro, dar o “salto qualitativo” na garantia efetiva de direitos às vítimas de crime, mas ainda que haja “uma clara evolução” nesse sentido nos últimos 30 anos, ainda há “um longo caminho para se trilhar”, que retire a vítima de uma situação ainda “tão marginalizada no sistema, que continua a ser claramente arguido-centrista”.
“Houve claramente uma evolução, não chegámos lá ainda. Se todos os direitos são realmente verdade e quotidianamente efetivados para todas as vítimas de todos os crimes e não só para as vítimas de alguns crimes? Diria claramente que não, que há estádios diferentes de desenvolvimento”, afirma, referindo que a profusão de produção legislativa contraria as “boas intenções” do legislador e provoca “atropelos” à efetividade dos direitos.
Há ainda “uma característica muito nossa enquanto comunidade”: a “grande diferença” entre o que está legislado, os “edifícios jurídicos magníficos” e a sua concretização, “a sua efetivação todos os dias, para os beneficiários reais que devem existir”.
Num contexto europeu, no qual se estimam 75 milhões de vítimas de crime todos os anos, com muitas vítimas invisíveis, não declaradas, não registadas, João Lázaro destaca o papel de associações como a APAV para chegar às chamadas “cifras negras” e ajudar a trazê-las para dentro do sistema, garantindo apoio e direitos.