Os deputados enganam-se, quando pensam que podem facilmente resolver as questões suscitadas pelo Tribunal Constitucional (TC) sobre a eutanásia. É esta a opinião de quatro constitucionalistas ouvidos pelo programa "Em Nome da Lei", da Renascença.
Quando, na segunda-feira, foi divulgado o acórdão do TC, a reação dos partidos autores do decreto (PS,IL,BE,PAN e Livre) foi de que se tratava apenas de "uma questão de semântica” e que tudo se resolveria com uma clarificação de que o recurso à morte e ao suicídio medicamente assistidos apenas seria possível nos casos em que além do sofrimento psicológico e espiritual houvesse sofrimento físico.
Paulo Otero alerta para a declaração de voto conjunta de quatro dos juízes que “logo na primeira fase, dizem que a aprovação de um regime satisfatório em matéria de morte medicamente assistida constitui um desafio de enorme dificuldade. Ou seja, para quem pensa que basta esclarecer se o e é cumulativo ou não, no sofrimento físico, psicológico e espiritual, está muito enganado. Não basta isso. Só, no fundo, quem não tem a perceção da técnica legislativa - e o acórdão sublinha várias vezes 'má técnica legislativa' -, é que pode pensar que está tudo feito, que é tudo fácil".
O professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa sublinha que o acórdão sobre a eutanásia, longe de apontar o caminho ao legislador para sanar as inconstitucionalidades, como disse o Presidente da República, ”é verdadeiramente um roteiro para futuros pedidos de inconstitucionalidade. É um manual para o Presidente da República ter um pouco mais de atenção quando formula os pedidos e formulá-los com maior densidade substantiva. E é também um manual para qualquer cidadão poder impugnar, num caso concreto, num tribunal onde a questão venha a ser suscitada, ou qualquer outro titular de órgão constitucional que tenha competência para desencadear a fiscalização sucessiva".
"Este acórdão, nesse sentido, é maravilhoso, sobretudo na perspetiva de quem, como eu, é contra a despenalização da morte medicamente assistida", reforça Paulo Otero.
Também Teresa Violante considera que o legislador fica numa posição difícil porque se disser que basta o sofrimento psicológico e espiritual abre a porta à chamada "rampa deslizante". E se clarificar que o sofrimento físico, psicológico e espiritual são cumulativos, o recurso ao suicídio e à morte medicamente assistida vão ficar muito aquém do que era pretendido pelos partidos à esquerda.
”A questão da cumulatividade pode tornar o regime jurídico muito fechado e abrangendo um número de casos muito mais limitado do que aqueles que o legislador inicialmente tinha em mente”, defende a investigadora da Universidade de Erlangen-Nuremberga.
“Se tornar os tipos de sofrimento alternativos, na verdade pode efetivamente abrir espaço à chamada rampa deslizante", aponta.
Jorge Pereira da Silva até identifica de imediato uma das inconstitucionalidades que poderá vir a ser declarada em futuras apreciações pelo TC. Os juízes, na apreciação que fazem, estão vinculados pelo pedido do Presidente da República e este deixou de fora a questão de saber se o Estado deve garantir primeiro o suicídio assistido e só nos casos em que ele não é possível a morte medicamente assistida.
"O pedido do Presidente da República deixou de fora essa questão, mas, manifestamente, a maioria dos juízes queria ter podido analisá-la. Isto significa que há uma questão de constitucionalidade que não foi decidida e pode vir a ser colocada eventualmente mais tarde, numa outra fiscalização preventiva, ou até numa sucessiva."
Também Tiago Fidalgo de Freitas entende que o legislador está perante uma "prova diabólica" e não tem nenhuma garantia de que um novo diploma, em que fique mais claro que é exigido o sofrimento físico, psicológico e espiritual, para o acesso à eutanásia, venha a passar no crivo do TC.
Este investigador e professor assistente da Faculdade de Direito de Lisboa defende que “o Tribunal Constitucional não diz se o legislador confirmar que os sofrimentos têm de ser cumulativos, se essa solução é conforme à Constituição".
Mas não é o que decorre da decisão? O constitucionalista diz que” isso não está nem implícito na decisão do TC”. Jorge Pereira da Silva acrescenta que "a situação pode até ser a contrária: uns acharão que a solução legislativa tem de exigir os três tipos de sofrimento para não ser inconstitucional e outros entenderão que se forem exigidos os três tipos de sofrimento, isso representará uma inconstitucionalidade”.
Teresa Violante entende que o legislador fez o que lhe foi dito para fazer pelo TC na anterior apreciação: foi buscar o conceito de sofrimento físico, psicológico e espiritual à lei de bases dos cuidados paliativos. O erro está na forma com os juízes olham para o sofrimento físico, confundindo-o com dor física, o que não tem qualquer fundamento científico.
"Partindo duma falácia, o Tribunal Constitucional discorre toda a sua argumentação e dá o exemplo do paraplégico que não tem dor física e não terá sofrimento físico. Ora, isso não é verdade. Um paraplégico pode não ter dor física, mas tem sofrimento físico."
Violante continua: "Um dos autores que mais tem estudado e mais tem escrito sobre sofrimento físico dá vários exemplos de situações de doenças em que não há dor física, mas há intenso sofrimento físico. Doenças em que as pessoas sufocam, em que as pessoas se engasgam ,diarreias profundas, incontinências urinárias. Portanto, toda uma séria de situações patológicas que são isentas de dores físicas mas que cotejam intenso sofrimento físico.”
Teresa Violante sublinha que Portugal édos poucos pa íses do mundo que tem a fiscalização preventiva da constitucionalidade e em que essa competência é do Presidente da República. Ao utilizá-la, o Presidente “acaba por ter uma espécie de poder de veto”.
A constitucionalista adianta que em nenhum dos países que tem um regime de morte medicamente assistida houve uma intervenção do Tribunal Constitucional antes da entrada em vigor da lei. Em Portugal, ”embora sem reservas de fundo quanto à constitucionalidade da morte medicamente assistida, a entrada em vigor da legislação pode ser sucessivamente protelada pelo Presidente da República, usando o recurso à fiscalização preventiva”.
Os deputados vão ter de mexer pela quarta vez na legislação da eutanásia, depois de o TC ter chumbado a última versão do diploma. Tal como do primeiro veto, não por considerar o suicídio ou a morte medicamente assistida incompatíveis com o direito à vida, mas por entender que o decreto aprovado pelos deputados não é claro quanto às condições em que pode recorrer-se à eutanásia. Bastará estar num sofrimento psicológico e espiritual de grande intensidade, considerado pelo próprio como intolerável? Ou a dor física é condição "sine qua non"?
Estas são questões em debate na edição de sábado do "Em Nome da Lei", um programa da jornalista Marina Pimentel, transmitido aos sábados ao meio-dia pela Renascença e sempre disponível nas plataformas de podcast.