O presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, evocou esta terça-feira o “ilustre português” Aristides de Sousa Mendes, alertando para fenómenos atuais de ódio racial, homofobia, antissemitismo e “recusa do outro”.
A segunda figura do Estado falava na cerimónia de concessão de honras de Panteão Nacional ao antigo cônsul português em Bordéus, que salvou milhares de judeus do regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial.
“Oito décadas passadas sobre os acontecimentos de Bordéus, é, porém, com sobressalto que, pela Europa e pelo mundo fora, se verifica que o registo histórico do sucedido pode não ter ficado suficientemente enraizado na memória coletiva das democracias que desde então foram emergindo”, declarou.
Ferro Rodrigues lembrou, “a este propósito, o aumento evidente de fenómenos de antissemitismo, de ódio racial, de homofobia, de recusa do outro, por ser estrangeiro ou diferente”, assim como “o recrudescimento de discursos negacionistas do Holocausto e das vidas das suas vítimas, cujo testemunho na primeira pessoa vai, por força da lei do tempo, começando a desaparecer”.
Durante o seu discurso, o presidente do parlamento recordou o percurso de vida do antigo cônsul que decidiu “desafiar as ordens de Lisboa”, o que “comportava riscos evidentes” para a “sua própria vida, para a sua liberdade, para o seu sustento e o da sua família”.
Aristides de Sousa Mendes optou, no entanto, “por obedecer à sua consciência e, independentemente da religião, raça ou convicções políticas, emitiu vistos a todos os que o solicitaram, e que procuravam noutras geografias apenas um refúgio que salvaguardasse a sua vida, a sua liberdade e a sua dignidade”, referiu.
“Todos concordarão que o exemplo de generosidade e de coragem de Aristides de Sousa Mendes engrandece Portugal e prestigia o povo português. Tenho a certeza de que a maioria das pessoas gostará de pensar que, se alguma vez estivesse perante um dilema equivalente, escolheria não olhar para o lado e tomar a decisão ética, enfrentando as consequências. Felizmente, poucos de nós são confrontados na vida real com tal dilema”, declarou.
Confessando não ser “nenhum pessimista antropológico, antes pelo contrário”, Ferro Rodrigues apontou, no entanto, ter “idade suficiente, bem como um razoável conhecimento da História, para saber que são muito raras as pessoas que, na hora decisiva, face a situações concretas, arriscam mesmo comprometer a sua segurança, a sua liberdade, ou a da sua família, com o único propósito de ajudar os outros”, sendo que Aristides de Sousa Mendes foi uma dessas pessoas.
“E, quando algo de extraordinário como isso acontece, somos tocados pela grandeza”, disse, confessando que a “enorme coragem” do antigo cônsul sempre o emocionou.
Ferro Rodrigues deixou ainda um agradecimento ao grupo de trabalho parlamentar responsável por definir o processo de concessão de honras de Panteão Nacional a Aristides, depois de ter sido aprovado no parlamento, em julho de 2020, um projeto de resolução proposto pela deputada não inscrita Joacine Katar Moreira – na altura ainda deputada do partido Livre.
“Aristides de Sousa Mendes foi figura maior do século XX português. Que o exemplo da sua conduta, a que hoje aqui prestamos homenagem, sirva de farol em tempos de novas dificuldades e desafios para a memória coletiva, demonstrando o valor da resistência ao injusto e desumano. Que a sua entrada no Panteão Nacional contribua para perpetuar a sua memória”, concluiu.
Nascido em 19 de julho de 1885, na aldeia de Cabanas de Viriato, concelho do Carregal do Sal, Viseu, Aristides de Sousa Mendes morreu em abril de 1954, no Hospital Franciscano para os Pobres, em Lisboa.
Pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, Aristides assume funções como cônsul em Bordéus, França, onde viria a desobedecer às ordens vindas do Governo português liderado por António de Oliveira Salazar. Em 1939, Portugal emitiu uma diretiva apelidada de “Circular 14”, que condicionava a emissão de vistos aos refugiados por diplomatas portugueses, sem autorização prévia.
Aristides de Sousa Mendes salvou milhares de judeus e outros refugiados do regime nazi, emitindo vistos à revelia das ordens da ditadura – a maioria entre 12 e 23 de junho de 1940 - o que lhe valeu mais tarde a expulsão da carreira diplomática, acabando por morrer na miséria.
Em Portugal, em abril de 1988, a Assembleia da República decretou, por unanimidade, a reintegração, a título póstumo, na carreira diplomática do ex-cônsul em Bordéus, reconhecendo-se também o direito a indemnização reparadora aos herdeiros diretos.