O Governo australiano está a ser acusado de tentar esconder parte da história oficial da missão de manutenção de paz levada a cabo em Timor-Leste, após o referendo de independência em 1999.
As acusações, veiculadas pela imprensa australiana, dizem respeito a um novo livro que conta a história oficial do envolvimento australiano na operação internacional de manutenção de paz em Timor-Leste após a destruição que se seguiu ao anúncio do resultado do referendo de 30 de agosto de 1999.
Historiadores oficiais questionam o facto de o livro - "Born of Fire and Ash", editado pelo Memorial da Guerra -- ter sido publicado sem qualquer lançamento oficial (ainda nenhum está previsto), ao contrário do que ocorreu com outros volumes sobre a história militar australiana.
"Não é suspeito, não é estranho, que não tenha havido lançamento oficial do livro pelo Memorial de Guerra, que o publicou"; questionou Neil James, diretor executivo da Associação Australiana de Defesa (ADA), citado pelo portal informativo Crikey.
"Não só é muito, muito estranho, é também sem precedentes. Todas as séries oficiais de história desde que a tradição começou [durante a Primeira Guerra Mundial] foram lançadas com muita fanfarra. Exceto esta", sublinhou.
A falta de lançamento oficial deve-se, segundo fontes ouvidas pelo portal, a parte do conteúdo do primeiro volume da história oficial desse período, escrito pelo professor Craig Stockings, historiador oficial do Memorial de Guerra, ter sido publicado em dezembro.
O livro "Born of Fire and Ash" foi escrito por Stockings com base em seis anos de investigação à resposta da Austrália às ações indonésias antes e depois do referendo, que levaram à entrada, em 20 de setembro de 1999, da força internacional Interfet.
A obra baseia-se em documentos confidenciais do Governo e mais de 2.500 entrevistas com veteranos e funcionários de setores como defesa, serviços de informação e negócios estrangeiros e detalha a resposta do então Governo federal australiano, liderado por John Howard.
Uma fonte citada pelo portal informativo australiano Crikey, conhecedora do processo de investigação para o livro, considera que o texto contraria diretamente os mitos políticos em torno da eventual missão de manutenção da paz da Austrália em Timor-Leste.
"A impressão do público sobre a crise -- de que a Austrália essencialmente liderou os esforço para salvar Timor-Leste - é uma ofuscação. O livro mostra claramente que o Governo e os seus funcionários fizeram o seu melhor para resistir à intervenção militar em Timor-Leste até ao fim, porque consideravam a sua relação com a Indonésia muito mais importante do que a timorense. Essa é a verdade", disse a fonte.
Também o ex-historiador oficial David Horner -- que antecedeu Stockings e pressionou durante anos para um livro sobre Timor-Leste -, manifestou surpresa por não haver um lançamento oficial.
"Foi surpreendente que não tenha havido lançamento de livro. Mas eu entendo o pensamento por trás disso, que é que os Governos ficam extremamente nervosos com as histórias oficiais porque pensam que podem embaraçá-los ou afetar as relações oficiais com outros países", disse.
Horner considerou que o não lançamento de livro pode ser interpretado como uma extensão da "interferência política sem precedentes" que sustentava as tentativas dos funcionários da Ministério dos Negócios Estrangeiros, de procurar modificar o conteúdo do livro durante o mandato do anterior Governo australiano.
Correspondência entre Stockings e o MNE confirmou que o MNE estava a pressionar para "atenuar as revelações na história oficial", segundo o Crikey, gerando ameaças de demissão do historiador e acusações de "tentativa de censura".
O processo de verificação do conteúdo do livro demorou mais de três anos com o senador independente Rex Patrick ainda a pressionar para a divulgação pública de mais documentos, algo ainda a ser considerado pelas autoridades.
No prefácio do livro, a que a agência Lusa teve acesso, recorda-se a dificuldade em conseguir autorização do Governo australiano para escrever sobre o período referente a Timor-Leste, um processo que envolveu vários pedidos, sempre recusados, que foram aprovados só em 2015.
O autor referiu que na investigação relativamente a Timor-Leste não se sentiu "tão livre, em termos da governação externa imposta" como os seus antecessores, com oposição prolongada de Camberra.
"Três vezes esta submissão foi apresentada, contendo opções para expandir a série de operações de manutenção da paz para incluir Timor-Leste e outras operações até 2006 ou levantar uma nova série para o Iraque e Afeganistão", referiu.
A autorização só chegaria alguns anos depois, após a nomeação de Stockings como historiador oficial.
"Não nos censurámos. Incluímos o bom com o mau -- os atritos e os erros são uma parte tão válida do registo histórico como sucessos desenfreados. As realizações, apesar das deficiências institucionais, tendem a reforçar o legado dos intervenientes, e não o inverso. Escrevemos como vimos as coisas, e como o rasto de provas indicou. Estes volumes visam, portanto, ser verdadeiros, não necessariamente triunfais", escreveu.
Stockings notou que o texto não está classificado, mas que se baseia "num estudo aprofundado dos registos documentais classificados, disponibilizados pelo Governo, para as operações abrangidas".
"O material excluído da equipa de História Oficial e da publicação, total ou parcialmente, é o que é considerado pelos departamentos e agências governamentais relevantes como potencialmente prejudicial para a segurança nacional australiana ou para os interesses nacionais", sublinhou.
"Algumas partes interessadas têm-se revelado mais investidas do que outras a este respeito, e o processo tem sido, por vezes, difícil. No entanto, não foram feitas alterações que ameacem a veracidade, credibilidade, legitimidade ou integridade dos volumes", sustentou.