​Apanhados na terra dos outros. Imigrantes em fuga da Ucrânia relatam frio, fome e alguma violência
02-03-2022 - 06:25
 • José Pedro Frazão , enviado especial na fronteira com a Ucrânia

Fome, frio, horas infindáveis de pé. À Polónia não chegam apenas ucranianos mas também imigrantes apanhados pela convulsão na Ucrânia., que relatam situações de desespero e uma luta contra as emoções que os invadem. Nos relatos recolhidos pela Renascença, há sinais de alguma violência cometida na tensa filtragem de saídas do lado ucraniano da fronteira com a Polónia.

Raúl mal sentia os pés quando a caminhada acabou com a entrada na Polónia. A viagem começou quatro dias antes quando decidiu que era tempo de sair da capital ucraniana onde estava a dar formação na área da restauração. De Kiev foi um salto de comboio até Lviv, de onde apanhou um táxi até às imediações da fronteira. Faltava muito caminho para Raúl, exactamente trinta e dois quilómetros para chegar a essa meta. “O trânsito estava horrível, horrível” e tudo foi feito, sim, literalmente passo a passo.

Tal como muitos que chegam nas últimas horas à fronteira polaca, este profissional da hotelaria não é um ucraniano em fuga do seu país. Formado na estância turca de Izmir, este azeri de 29 anos foi apanhado em Kiev pelo estrido das bombas russas. Os olhos esbugalhados acentuam o medo da semana passada quando repete que “ foram quatro grandes bombas” que detonaram esta fuga para oeste. O seu companheiro de jornada, um compatriota taxista na capital, evadiu-se ao primeiro sinal do microfone mas Raúl mostrou-se disponível para falar embora sem gravar.

“Ontem quis chorar”, confessa, “mas não o fiz”. Não parece evidente o que, além de “muito frio e fome”, fez tremer este homem de um metro e oitenta, barba de mais de um mês, bebericando chocolate quente enquanto conversa sobre a jornada num dos cantos do terminal ferroviário de Przemsyl.

Caos na fronteira

Os olhos voltam a esbugalhar-se à medida que Raúl combate a falta de inglês essencial para partilhar que “os guardas ucranianos foram muito estúpidos” na fronteira. O que aconteceu ? “Tocaram nas pessoas”, mas percebe-se que o verbo que conseguiu articular em inglês é suave para caracterizar o que aconteceu. As mãos, de novo a expressividade dos olhos desaguam na palavra esclarecedora: “bastões”.

Uma hora antes o paquistanês Nenad tinha usado os braços para me explicar que lhe tinham batido algures na fronteira. Num inglês quase imperceptível, ainda me diz ser de Lahore. Enrolado numa manta, claramente abalado com a viagem, apenas faz questão de dizer que “ está orgulhoso” pela forma como a Polónia os recebeu. É um país “muito bom” que “ajuda muito”, sintetiza. Questionado sobre um possível regresso à Ucrânia, diz apenas que quer ficar na Polónia e afasta-se de nós, mergulhando no seu grupo de origem.

Ali ao lado um jovem alto procura perceber o nome esta estação. A fluência em inglês que não corresponde às expectativas da conversa é do polícia polaco. Nandi é nigeriano, estuda medicina na universidade ucraniana de Ivano-Frankivsk. Da fronteira não se queixa, ao contrário de notícias publicadas na véspera que apontavam para actos de racismo contra estudantes de medicina.

Três dias de frio e lágrimas

Foi por pouco que este nigeriano já para lá dos 30 anos não se formou como médico na Ucrânia. Estava a poucos meses de acabar a tese final do curso de Medicina que frequentou nos últimos anos naquela universidade do sudoeste da Ucrânia. Mas os tambores da guerra soaram mesmo antes de qualquer bomba e Nandi juntou-se a vários compatriotas nesta jornada depois de a universidade ter suspendido as actividades lectivas por duas semanas.

“Decidimos fugir porque em tempo de guerra ninguém tem certeza de nada. Até era bastante seguro estar em Ivano-Frankivsk, no sul da Ucrânia . Esperámos alguns dias e quando começámos a ouvir sobre Kiev e Kharkiv houve algum pânico e os nossos pais pediram-nos para sair”, explica este estudante nigeriano enquanto espera num dos corredores do terminal ferroviário, lotados por gente de todos os continentes, dormitando em sacos-cama junto às paredes.

Nandi conta que não havia onde dormir num caminho apinhado de gente. “ Se houvesse alguma fogueira, ali dormíamos um pouco, fora da estrada”, lembra o nigeriano que faz contas ao tempo que esteve na fronteira. Foram 12 horas de caminhada e mais dois dias à porta da Polónia para poder entrar. A situação mais difícil? “ Ver como os nossos companheiros quase se foram abaixo, em lágrimas, estando quase a acabar o curso”. Nandi espera ser médico a partir do próximo ano. Ser cirurgião será porventura uma forma de operar alguma mudança por exemplo na sua Nigéria natal.