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O fenómeno migratório é global e não se resolve sem uma resposta global, defende a directora da Obra Católica Portuguesa das Migrações (OCPM).
Em entrevista à Renascença a propósito do Dia Internacional do Migrante, que se assinala esta segunda-feira, Eugénia Quaresma diz que as pessoas que fogem da guerra, da pobreza e fome – o que, em cada vez mais casos, são consequência das alterações climáticas – não podem continuar a ser tratadas “como animais”.
Lembra o tráfico humano, que “não é filme”, diz que enquanto tudo isto “não nos inquietar” verdadeiramente nada mudará, e fala da burocracia que em Portugal continua a dificultar a integração de quem chega, apesar do nosso país ser um exemplo em matéria de acolhimento.
Em 2018, Eugénia Quaresma espera que seja alcançado um Pacto Global que ajude a mudar este cenário.
O Dia Internacional do Migrante é mais uma oportunidade para chamar a atenção para este drama do mundo moderno, que continua a marcar a actualidade?
É, porque infelizmente continuamos a ter muitos exemplos dramáticos. Preocupa-nos sobretudo as migrações forçadas, porque são as que deixam as pessoas numa situação de maior vulnerabilidade e as que nos trazem mais dramas.
E são muitos os que continuam a fugir da guerra e da fome…
Sim. E das alterações climáticas. Nós não falamos muito disso, mas está a crescer o número de refugiados climáticos e isso deve obrigar-nos a repensar as questões ao nível de política, ao nível do acolhimento, a nossa mentalidade frente àquele que vem de fora. Os problemas com o clima causam pobreza, desalojam pessoas.
A Europa é uma das regiões afectadas por este fenómeno migratório, mas não tem havido grande evolução na sua política de acolhimento, pois não?
Infelizmente não. E estamos muito preocupados com a Europa, onde estamos inseridos, mas infelizmente este movimento é muito maior em países vizinhos às situações de conflito.
E o continente americano, por exemplo, também tem um fluxo migratório gigantesco, com situações dramáticas e que também são alvo da preocupação e da acção da Igreja. É importante repensarmos isto tudo, por isso em 2018 queremos muito que seja assinado um Pacto Global em que todos os líderes mundiais (infelizmente não podemos contar com os Estados Unidos da América) se comprometam realmente a fazer qualquer coisa. Porque esta questão atinge todos os continentes e tem que ser resolvida globalmente, não pode ser uma solução unilateral.
E sem se resolver as situações nos países de origem não se consegue travar este movimento?
É muito importante trabalhar nas causas da imigração forçada e fazer cumprir os objectivos de desenvolvimento para o milénio, que passam pela erradicação da pobreza, por mais e melhores condições de saúde, pela educação e pela justiça. O combate à corrupção e ao tráfico humano, por exemplo, dependem da justiça funcionar efectivamente.
O Papa tem alertado inúmeras vezes para o drama dos refugiados e ainda recentemente lamentou que na Europa não haja migrantes, mas “quotas”. As pessoas continuam a ser tratadas como números?
Infelizmente sim. O Papa Francisco e todos os Papas anteriores chamaram sempre a atenção para a centralidade da pessoa, e na mensagem para o próximo Dia do Migrante e do Refugiado, que ao nível eclesial celebramos a 14 de Janeiro, é recordado isso mesmo: que a segurança da pessoa tem de vir antes da segurança nacional.
Na Europa, nós estamos a viver este conflito por causa da segurança nacional, porque cada país se quer proteger a si mesmo e esquece-se dos países vizinhos. É isto que não pode acontecer e o Pacto quer responder um bocadinho a isto, para que seja efectiva a solidariedade entre os diferentes países e continentes. E ajudar a resolver a situação nos países de origem do fluxo migratório não tem necessariamente de passar por dar dinheiro, mas por dar formação, por dar os recursos técnicos, porque as pessoas estão lá cheias de vontade de fazer qualquer coisa para desenvolver o seu país.
Recentemente soubemos que há migrantes a serem vendidos como escravos na Líbia, o que levou a Amnistia Internacional a acusar a Europa de estar a ser cúmplice disto…
É uma realidade triste. Nós já tínhamos noção de que a escravatura continuava e que isto não é filme, por causa das informações que recebemos das instituições que acompanham o tráfico humano.
As pessoas são traficadas para serem escravizadas, seja para fins laborais, sexuais ou de mendicidade. Há sempre ali uma questão de exploração. Agora, esta venda a céu aberto é voltar muitos anos atrás. Tem de se actuar a nível político, mas também ao nível da mentalidade das pessoas, porque ninguém deveria vender ninguém. O ser humano não tem preço.
Tem havido inúmeros alertas, nomeadamente das instituições ligadas à Igreja. Porque é que em sua opinião não se avança mais?
É preciso dar mais força às organizações que trabalham no terreno e que procuram libertar, por exemplo, as crianças-soldado, porque infelizmente as crianças também são escravizadas. Como é que se pode mudar a mentalidade, esta cultura de escravatura? Isto tem de nos inquietar para conseguirmos encontrar uma resposta, porque se formos indiferentes, se acharmos que não é connosco, as coisas permanecem.
Há dias, o Serviço Jesuíta aos Refugiados, a Cáritas e a Amnistia escreveram ao primeiro-ministro português, a propósito do Conselho Europeu, a alertar para a situação dos migrantes que estão nas ilhas gregas. É uma situação que precisa de ser revista?
Precisa de ser revista, porque é uma situação escandalosa. As pessoas estão ali como se estivessem em campos de concentração, impedidas de sair. As pessoas não podem continuar a ser tratadas como animais...
É como estão?
Sim, arrumadas em locais sobrelotados, em condições muito precárias, agravadas pela chegada do Inverno, e sujeitas a violência. Existe muita violência dentro destes campos, porque as pessoas estão aglomeradas, e estar aglomerado propicia o conflito. Isto tem de ser resolvido, porque os campos de refugiados quando foram criados não foi para serem definitivos, seria para uma fase transitória que ajudaria depois a encaminhar para a integração. Daí a importância de percebermos o sentido destes quatro verbos: o acolher, o promover, o proteger e o integrar.
A Europa corre o risco de ficar com campos de refugiados definitivos, como acontece nalguns países africanos?
Corre. Há países onde há campos de refugiados com mais de 20 anos, onde há crianças que já ali nasceram e não conhecem outra realidade. Isto é muito triste.
Portugal tem sido elogiado pela sua política de acolhimento, foi mesmo considerado um caso exemplar entre os países da Europa que estão a receber migrantes. Mas, podia ter feito mais? Segundo o último relatório da Comissão Europeia o nosso país recebeu 1.507 refugiados, o que ficou aquém dos 4.500 que estavam previstos...
Houve problemas desde o início em retirar as pessoas dos campos da Grécia e de Itália e fazê-las chegar a Portugal, por isso o número ficou muito aquém. Houve uma altura em que nós tínhamos famílias disponíveis para acolher e os migrantes não chegavam. Houve uma falha no processo de recolocação.
Depois, com a sua chegada, deparámo-nos com algumas questões que não estávamos à espera, como o desejo de alguns em irem ter com outros familiares. Por isso um dos apelos que fazemos é que se reconheça o direito de viver em família e de haver liberdade de circulação.
Com os migrantes não há liberdade, nós pomos muitas restrições,e temos de arranjar aqui uma forma de promover a migração circular, a sua entrada legal e segura. Alguns países criaram corredores humanitários para os mais vulneráveis, porque muitas vezes só conseguem sair os que estão em melhores condições, os mais doentes ou os deficientes ficam para trás. Temos de estar atentos às diferentes realidades que existem.
Em Novembro foi criada em Portugal a Rede Interinstitucional para Migrantes (RIM), que junta várias instituições. Qual é o objectivo?
O grande objectivo é trabalharmos em conjunto, porque com a chegada dos refugiados apercebemo-nos que muitos tinham grandes dificuldades em regularizar a sua situação. É que a lei portuguesa, apesar de ser muito boa, na prática tem pequenos detalhes que dificultam a regularização, o reconhecimento da pessoa para trabalhar, a questão do estudo.
Dificuldades sobretudo burocráticas?
Por exemplo, para um migrante pedir autorização de residência tem que submeter todo o processo on line, tem de digitalizar os documentos e enviá-los pela internet, é obrigado a criar um email para submeter a sua candidatura. E não pode criar um endereço electrónico qualquer, há regras. Ora, para isso precisa de ajuda, porque não tem os meios. Eu própria estive a ajudar num processo e percebi as dificuldades. A lei devia ter previsto formas de ajudar.
O objectivo da RIM é agilizar os processos , sobretudo a este nivel burocrático?
É trabalhar em rede, ver onde há dificuldades e resolver em conjunto.
Em Portugal há já muitas instituições a trabalhar no terreno nesta área, e muitas delas católicas… é aproveitar a experiência que já têm?
Sim, e nesta rede estão, para além da Obra Católica das Migrações, o CEPAC – Centro Padre Alves Correia, dos missionários espiritanos, e o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS), que foi o grande impulsionador e que vai estar à frente da RIM nos dois primeiros anos, porque isto vai ter uma coordenação rotativa. Estas foram as três instituições da Igreja fundadoras da rede, a que se juntaram outras associações, como a Casa do Brasil, a Culturgest, a Associação Lusofonia, etc. Várias instituições de diferentes áreas, a trabalhar em rede.
O que também revela a preocupação que por cá vai havendo. Os portugueses já olham para a vinda de pessoas de fora como algo mais positivo do que negativo?
Eu não sei dizer isto em números, mas acho que sim, pelo movimento que tivemos com a questão do acolhimento, com a criação da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), que nasceu da sociedade civil, e com o que vamos vendo nas escolas, entre os miúdos, o modo como se relacionam, porque há muitas escolas que têm muitas nacionalidades e existe a preocupação de promover o encontro, o desejo de estar desperto, de agir correctamente e não permitir que as vozes xenófobas sejam mais fortes do que as vozes da hospitalidade. Mas ainda temos de trabalhar muito a questão dos direitos e dos deveres, também de quem chega, e que também tem deveres. O dever da reciprocidade, de estar aberto ao outro, de não se fechar nem ficar isolado só com a sua comunidade. Porque não basta só a comunidade portuguesa fazer o esforço para ir ao encontro, é preciso também que haja disponibilidade de quem chega para desfazer equívocos, porque falarmos línguas diferentes, termos hábitos culturais diferentes, e isso às vezes cria equívocos.
Estamos no bom caminho?
Creio que sim. É necessário pormos a questão das migrações no centro, recordar que são pessoas e famílias que estão no centro, que não podemos explorar o outro. E eu acho que aqui a Igreja tem um papel fundamental.