A peça “A Caixa Preta”, que os autores Mia Couto e José Eduardo Agualusa escreveram a quatro mãos, deu origem a “Nayola”, a longa-metragem de animação realizada por José Miguel Ribeiro que esta quinta-feira chega aos cinemas em Portugal, depois de já ter estreado em Angola.
O filme conta a história de três gerações de mulheres que vivem a guerra em Angola e a forma como o conflito afeta a vivência familiar. Em entrevista ao programa Ensaio Geral, da Renascença, Agualusa confessa que a peça não teve muito sucesso em Angola.
“Esta foi a segunda peça que fizemos juntos. Tínhamos feito uma comédia que correu muito bem e depois decidimos fazer algo mais sério, e juntamo-nos para escrever esta peça a partir de um conto. Depois a história cresceu muito e a peça não correu muito bem, talvez por ser mais sombria do que a primeira peça”, conta o escritor angolano.
O filme, contudo, parece já estar a ter mais sucesso do que a peça, porque já somou 12 prémios, um deles, o Prémio do Público na Mostra de São Paulo, no Brasil. Com o guião escrito por Virgílio Almeida, o filme nasceu de uma vontade do realizador José Miguel Ribeiro depois de uma viagem a Luanda, em Angola.
“Acho que razão pela qual quis fazer um filme a partir desta peça é a história desta família e de como a guerra influencia e determina o futuro destas pessoas, a sua capacidade de resistência, de sonhar e lutar por aquilo em que acreditam. Fiquei tocado por isso”, confessa o realizador.
Segundo José Miguel Ribeiro, a “ideia de que a guerra tem também uma dimensão na família e a família ser ao mesmo tempo um elemento de resistência à guerra, mas também um elemento de passagem de testemunho dessa resistência de geração em geração", foi algo que interessou ao realizador de cinema explorar.
Bonga e rapper Medusa dão voz ao filme
O filme conta com vozes como as do cantor Bonga e da rapper angolana Medusa, que empresta a sua voz a Yara, a uma das personagens principais do filme. A longa-metragem que levou nove anos a ser concluída é uma coprodução entre Portugal, França, Bélgica e Holanda.
Depois da estreia em junho de 2022, no Festival Internacional de Annecy, em França, “Nayola” já esteve presente em vários festivais. O filme traça também um retrato de Angola de hoje. Yara, a mais jovem personagem, é uma rapper ativista que através da música transmite mensagens políticas.
“Aquela menina dá corpo a esta juventude inconformada que temos em Angola hoje, felizmente, e que está fazendo a mudança. Se há alguma razão por que acredito em Angola é porque temos esta juventude combativa, tão inconformada”, diz José Eduardo Agualusa.
O escritor angolano reconhece que a história de Yara se baseia no grupo criado pelo ativista Luaty Beirão. “É uma música, o rap, que está diretamente ligado à poesia. Não deixa de ser interessante pensar que a independência de Angola surgiu também primeiro através de movimentos literários. E é curioso pensar que tantos anos depois da independência esse movimento de democratização do país é feito, uma vez mais, por poetas”, refere Agualusa.
No enredo de “Nayola” convivem dois tempos diferentes. Por um lado, o período da guerra em que o espetador acompanha a busca de Nayola pelo marido desaparecido em combate e por outro lado, a vida mais recente, em 2011, quando Lelena e Yara, avó e neta, são visitadas por um personagem misterioso numa Angola onde os rappers e ativistas são perseguidos.
José Miguel Ribeiro assume-se como um “otimista por natureza”. “Acredito sempre que nos conseguimos superar e encontrar outros caminhos”, refere o realizador ao falar da atualidade de Angola.
“Como diz o Agualusa, encontrei também uma geração muito dinâmica em Angola, muito comprometida com uma luta diária, com sonhos. São pessoas que querem conseguir dentro do país oportunidades para não terem de sair”, explica.
É nesse sentido que “Yara é um símbolo dessa capacidade de sonhar”, refere o cineasta. “Estas três mulheres sonharam um país, e as três lutaram por esse país. É esse comprometimento e capacidade de superação das gerações que me interessou. Não queria deixar o filme preso à guerra e ao passado. Queria que o filme tivesse o renascimento de uma nova vontade de transformação de um país”, sublinha Ribeiro.
“A defesa da democracia e a construção da democracia estão muito ligadas, e só se conseguem com envolvimento das novas gerações”, conclui o realizador que para este filme se inspirou nas cores de África.
“Quando se chega a Angola e se começa a olhar aquela terra laranja que ao pôr-do-sol fica ainda mais vermelha, o contraste com os verdes, percebe-se que há uma intensidade cromática que não tem a mesma dimensão na Europa. Depois os aromas são muito fortes e diferentes. Percebe-se que há uma intensidade da vida. Essa intensidade, tentei trazê-la com minha experiência. Não inventei nada. Tudo o que está no filme foi inspirado em África”, admite José Miguel Ribeiro.