O livro "Peregrinação - Testemunhos que nos unem", de Leonor Xavier, chega às livrarias a 14 de Março pela Oficina do Livro. A obra inclui 70 testemunhos de 35 homens e 35 mulheres de personalidades à volta da palavra "peregrinação" – de Ana Zanatti a Jaime Nogueira Pinto, de Pedro Abrunhosa a Lídia Jorge.
Queria falar sobre o livro, mas também queria falar um bocadinho
sobre si. Começamos pelo livro?
E podemos pelo meio falar de mim também.
Na introdução, a Leonor fala da escrita como um modo de intervenção. Na verdade, o que faz neste livro é pedir às outras pessoas que interpretem a sua própria crença ou não crença. Já diz na introdução que é por ocasião da aproximação da visita do Papa Francisco que decidiu começar, mas por que é que teve de ser uma coisa pública? Por que é que quis chamar estas pessoas para fazerem isto?
Eu fiz um curso de Letras, e depois, sou jornalista. Vivi no Brasil e fiz muitas entrevistas na minha vida. Chamam-me "garimpeira de gente" lá no Rio e eu acho muito interessante poder gravar – não é com uma máquina, é registar –, não deixar que se percam os discursos directos das pessoas. Fui discípula do Lindley Cintra, o meu curso chamava-se Filologia Românica e, por isso, sou muito fixada nas palavras e nas maneiras de ser. E interessa-me muito a oralidade.
Já tinha feito um livro, "Portugal, Tempo de Paixão", a propósito dos 25 anos do PREC, em que eram 50 homens e 50 mulheres também de todas as tendências. O primeiro que me deu o depoimento dele foi o Jorge de Melo e tinha a Diana Andringa e tinha pessoas do Partido Comunista, tinha todas a pessoas mais variadas. Perguntava-lhes: "O que é que foi para si o PREC?". Não foi propriamente "o que é que fazia no 25 de Abril", mas como é que viveu aquele período. Achei que o formato [deste livro] podia ser assim.
Depois, pensei que haveria imensos textos, livros, opiniões, acontecimentos em torno das aparições propriamente ditas. Um dia acordei com esta luminosa ideia para mim: peregrinação é uma palavra-chave da cultura portuguesa. Até porque um dos nossos grandes heróis é o Fernão Mendes Pinto.
Leonor Xavier guarda todas as cartas que trocou ao longo da vida
A pergunta que fica é, então, o que é que é Fátima para si? E "peregrinação"?
Para mim, a peregrinação é uma espécie de caleidoscópio interior. Pode-se falar existencialmente dizendo que é o nosso percurso entre a vida e a morte ou podemos falar literariamente, comentando, como faz, por exemplo, Rui Zink, ou a Lídia Jorge, a "Peregrinação" do Fernão Mendes Pinto, os "Lusíadas", o António Alçada Baptista. Também poderia ir por aí. Não sou uma doida caminhante, mas também poderia falar em passear e pensar.
Por acaso, fui quatro vezes a pé a Fátima, que é uma coisa que não está aí dito, por isso se quiser posso ter essa perspectiva religiosa. É muito interessante Fátima ser em Portugal porque é uma coisa "ex cordis", é uma coisa de emoção. Acho que é o único lugar em Portugal onde, de facto, os portugueses mais variados estão.
Há uma grande descrição de uma peregrinação a Fátima no "Ano da Morte de Ricardo Reis", do Saramago, que era ateu. Faz uma fantástica descrição humana do que era Fátima naqueles anos 1930 do Ricardo Reis. Quando foi o 25 de Abril, havia um jornal francês que dizia: "Fátima, um ponto branco num Portugal vermelho". Por isso, como estou a fazer uma entrevista para a Rádio Renascença generalista e não propriamente confessional, pode ser tomado qualquer um dos fios desta meada.
Gostei de fazer este livro porque é a demonstração prática de que, havendo uma cultura cristã que é comum à maioria dos portugueses – hoje em dia já não se pode dizer "a todos" porque a formação das pessoas é múltipla –, é interessante ver que a palavra ou o conceito podem ter muitas expressões diferentes. Isso é que gostei de ir descobrindo.
Não conhecia essa expressão do "ponto branco num país vermelho". Não sei se hoje em dia se poderia considerar isso, mas quase se podia considerar um ponto branco num país indefinido. O que é que pensa sobre essa expressão trazida para a actualidade?
O que me parece forte hoje em dia em Fátima – e o frei Bento Domingues escreveu isso e faço essa citação no pequeno texto de introdução que fiz – é que é um espaço inter-religioso. É um espaço de encontro entre pessoas que vão ou por curiosidade ou porque são católicos praticantíssimos ou porque são devotos de outras religiões. Ontem fiquei sabendo que alguns xiitas vão a Fátima peregrinando não a pé, mas vão à procura de alguma coisa que faz parte da sua devoção.
Quando pensamos que o Dalai Lama foi a Fátima e na altura isso foi uma questão que provocou uma certa inquietação nos meios mais conservadores, hoje 2017, no século XXI, é perfeitamente natural que as pessoas de várias confissões ou várias devoções ou crenças ou espiritualidades passem por Fátima. Isso é que me parece interessante.
Leonor Xavier aprendeu a escrever à máquina num teclado AZERTY, no Brasil
No livro, o Fernando Santos fala na "tentativa do encontro" que acontece numa peregrinação. É a imagem do cristão que está sempre em busca, está sempre a tentar e vai andando sem saber muito bem se vai chegar ao destino ou não. A pergunta é: algum destes testemunhos foi particularmente surpreendente para si?
Por princípio nunca acho nada, ou nunca espero nada, nunca coloco etiquetas nas pessoas. Gosto do discurso directo das pessoas e gosto que as pessoas me confiem o seu discurso directo. Ou seja, nunca iria perguntar a uma pessoa de um determinado partido político se ela é desse partido político. Aliás, eu não conversava com as pessoas, dizia: "Eu não vou dizer nada! Quero ouvir o o que te vai na cabeça quando ouves a palavra 'peregrinação'".
Muitos testemunhos começam justamente com a palavra. Escrevi "peregrinação". Ponto. Só no final de cada um é que às vezes conversávamos. É interessante porque agrupam-se algumas coisas. Há algumas pessoas que falam da doença, há as que falam da caminhada, há as que falam do encontro consigo próprias, outras dos encontros com os outros; há umas mais aventurosas, outras mais literárias, e acho muito divertido porque no conjunto cada uma é surpreendente, é diferente. Mas, depois, percebe-se que somos portugueses... como é que eu hei-de dizer isto melhor? Não somos finlandeses, nem turcos, nem libaneses, nem brasileiros. A nossa fala directa é a nossa fala directa. É uma coisa que me interessa muito e que também senti no "Portugal, Tempo de Paixão".
Um excerto do texto de Francisco Sarsfield Cabral no livro "Peregrinação"
Fernão Mendes Pinto é dos nomes mais citados, António Alçada Baptista também, mas Fernão Mendes Pinto é recorrente entre os testemunhos. Por que é que a "Peregrinação" causa esta impressão tão grande?
O Fernão Mendes Pinto é um dos meus heróis. Houve aquele programa de televisão em que o nosso Salazar foi considerado a pessoa mais popular em Portugal, com grande surpresa para muita gente. Os meus heróis portugueses são o padre António Vieira e o Fernão Mendes Pinto. Sempre foi. E é tão extraordinário, é espantoso alguém que no século XVI... Ele aprontou alguma coisa. Não se sabe o que é. Teve de fugir de uma patroa e correu e atirou-se para dentro de uma nau que estava de partida no Tejo. A primeira coisa terrível é que a nau naufragou e ele saltou logo ali na costa em Melides. Está lá escrito numa pedra em Melides, o que eu acho excitantíssimo, porque é uma praia onde se vai, que se sabe que existe, há uma coisa de proximidade dele.
Mas enfim, ele vai até à China e passa 21 anos fora, denuncia as maldades que os portugueses faziam. O António Alçada Baptista gostava muito e ríamos porque o Fernão Mendes Pinto dizia "o coitado de mim!" e a verdade é que voltou a Portugal, sentou-se e escreveu estas memórias. Claro que há uma versão crítica dizendo que era tudo mentira, mas por que é que havemos de acreditar nisso? É tão delicioso.
Quando às vezes vemos programas de televisão sobre os portugueses no mundo, todos são "Fernões" Mendes Pinto à sua maneira, e por isso "peregrinação" acredito que seja uma palavra-chave.
Percebo que se interessa por aquilo que nos torna portugueses.
Completamente.
E a Leonor esteve fora muito tempo.
Sim, vivi no Brasil quase 13 anos e também tenho as duas nacionalidades. Penso que a lucidez da distância faz que passemos a pensar em nós portugueses. Eu nunca digo "este país" ou "neste país"; eu digo "em Portugal". E digo "eu" na primeira pessoa do singular porque acho que os portugueses são uma operação de adição de nós todos, nas nossas diferenças e nas nossas coisas.
Há aquele chavão que diz que aquilo que define Portugal é "fado, Fátima e futebol". Este ano, com o centenário das aparições de Fátima, o chavão vai-se tornando mais premente. As pessoas que entrevistou pertencem às elites culturais e intelectuais. Com este exercício, aproximam-se daquilo que é a ideia popular do país...
Elas são pessoas públicas porque se eu fizesse um livro com mil depoimentos do senhor José da Silva, da dona Manuela da Conceição, que podem ser pessoas absolutamente notáveis, ninguém ia ler porque vivemos numa época em que a popularidade, ou a fama, como agora dizem os mais novos, é muito atraente. Como jornalista tenho a noção de que poderia fazer um livro maravilhoso com esse outro exemplo de pessoas que não fossem públicas, mas ninguém comprava. Os editores não vendiam o livro, ninguém se interessava e eu não facturava os meus direitos autorais.
Assim, acho que agrado às pessoas públicas que pensam. Nem todas têm à mão de semear o que é que "peregrinação" lhes traz à cabeça.
Nesta sequência um bocado caótica da minha maneira de pensar, é verdade que não acho nada que "futebol, Fátima e fado" definam Portugal. Acho que é uma coisa rançosa. Quando estava no Brasil, irritava-me muito quando me lembravam que a TAP na época dos anos 1950 se chamava os "Tamancos Aéreos Portugueses". É uma coisa que me irritava profundamente. Assim como me irrita muito esse tipo de chavões até porque o centenário de Fátima é um acontecimento importante no mundo de hoje.
Leonor Xavier no Brasil, como jornalista, na década de 1970
Os portugueses muitas vezes poem-se numa posição pequenina.
Sim, e depois outra das coisas que também penso é que não queria que o tema Fátima se tornasse só um chavão. Como tenho a mania das originalidades, sem ser conscientemente, acabei por descobrir uma certa originalidade no assunto. De facto, a palavra "peregrinação", ou o tema, são um ponto de união entre nós.
A peregrinação, por si só, não remete só para Fátima. No livro há quem fale nos Caminhos de Santiago de Compostela, há quem faça este paralelismo entre as peregrinações em Portugal e as peregrinações a Santiago. Fala-se em Santiago como caminho meditativo, contemplativo, e Fátima é uma coisa mais urbana, mais difícil. A peregrinação, para quem não a faz com intuito religioso, é muitas vezes esta ideia do "mergulho interior".
Sim, a caminhada. A Dalila Carmo fala nesse sentido. Ou a Leonor Silveira. Gostei muito do depoimento do João Canijo. Tive a sorte de coincidir com o quase-lançamento do filme dele, que estou curiosíssima de ver. Ele faz uma grande comparação entre os Caminhos de Santiago e Fátima.
Faz rir em voz alta a descrição das casas de banho dos cafés nos caminhos para Fátima...
Os cafés! É tal e qual! Outra coisa que ele disse certíssima é que o grande problema de Fátima são os camiões TIR.
Tem havido demasiadas tragédias com peregrinos. Num país que tem tanta tradição, não há ainda outra estrutura para as pessoas fazerem o caminho.
Mas por isso é que Portugal é Portugal, que as pessoas adoram por isso. Há uma constante também nos testemunhos das pessoas que é o sofrimento. A peregrinação é uma expectativa e é um sofrimento físico ou mental. É muito verdade porque isso é falado a muitas vozes diferentes. Tentei pôr pessoas de gerações diferentes e de vidas diferentes. Acabei por não ter nem engenheiros, nem arquitectos, tenho um médico só. Tenho jornalistas...
Mas isso é porque as pessoas estavam menos disponíveis para falar?
Não, foi porque foi sendo. O livro foi sendo, passo a passo, foi acontecendo. Comecei em Junho [de 2016]. Eu não tenho o ar de trabalhar muito, mas trabalho [risos]. Vou trabalhando. Eu sou uma formiga invisível!
O testemunho da Patrícia Reis é muito tocante porque é das poucas pessoas que fala em gratidão. Não sei se isto não é também a excepção que confirma a regra no que toca à portugalidade: o português está sempre a carpir e de repente sai aqui alguém que fala em agradecimento.
Eu não tinha pensado nisso, mas é verdade. Isto é que é interessante: cada pessoa acrescenta um ponto àquilo que a pessoa anterior disse. Fiquei com uma ideia muito mais preenchida sobre a própria peregrinação. De facto é muito forte essa experiência na vida de uma pessoa. A gratidão. Ou o contacto com a terra; por exemplo, o António Marujo, que é católico, fala que o que o impressiona muito é o contacto com o pé no chão. Pessoas que não têm fé, neste livro, também falam nesse contacto com o chão. Enfim. Acho que dá muito que pensar.
Leonor Xavier desfilando com a escola de samba da Mangueira, no Rio de Janeiro
Como é que conseguiu chegar ao Brasil e criar o espaço para ser quem é hoje? Como é que deu o "grito do Ipiranga", por assim dizer?
Não me lembro porque é que eu conheci o meu primeiro editor em São Paulo, mas ele publicou-me um livro que se chamava "Atmosferas". Entretanto, porque eu tinha amigos no Rio, conheci uma vez a Ana Maria Niemeyer, filha do [arquitecto Oscar] Niemeyer, que tinha um marido que tinha um jornal chamado "Copa Centro". Eu contei que escrevia e tal.. e ele perguntou: "Você quer fazer uma coluna?" E eu fiz uma coluna sobre a noite. Ainda tenho para aí os recortes. E fiz algumas crónicas. Fui indo, devagarmente. Cheguei ao "Mundo Português", no Rio de Janeiro, e se calhar tinha aprendido grego e latim, mas não tinha ideia do que era um texto de legenda ou do que é que era escrever numa máquina de escrever AZERTY em vez de QWERTY. Só escrevia, como até hoje faço, com um dedo da mão esquerda.
Depois, por coincidência, conheci o Nuno Rocha, também no Rio, em casa de amigos. E ele também me perguntou se eu queria ser correspondente d' "O Tempo". Eu fui durante um tempo. Depois o António Alçada Baptista falou de mim ao Mário Mesquita. Entretanto, vim a Lisboa e o Mário Mesquita disse: "Ó Leonor, tem alguma coisa escrita?" Eu tinha feito, ou queria fazer, um conjunto de entrevistas que se chamava "O Brasil em discurso directo"; foram as primeiras entrevistas que fiz e que foram publicadas em Portugal. Eu tomava alguém do desporto, alguém do teatro, alguém da filosofia, alguém da literatura, alguém das artes plásticas, e fazia uma entrevista sobre a brasilidade. Isso foi publicado no "Diário de Notícias". O Mário Mesquita, a quem devo isso, fez que eu fosse durante esses seis ou sete anos correspondente lá no Rio.
Na minha vida privada, era casada e tinha três filhos, saía muito, conhecia muita gente, depois separei-me em 1984. Quando me separei, por ser jornalista, passei a conhecer as pessoas da criatividade. Achavam-me graça porque que eu roía as unhas e não usava saltos altos. Achavam que eu era divertida e por isso fui tendo grandes amigos, que mantenho até agora. Fui fazendo bem a minha vida. Acho que as pessoas gostavam de mim e ia escrevendo. Fui fazendo vários livros ao longo da vida, tenho filhos, tenho netos.
Não sei se acredito que tenha sido assim tão fácil, ter os filhos pequenos, escrever...
No Rio tínhamos empregadas. Como podia escrever em qualquer lado, no Rio fazia as minhas escritas enquanto tudo rolava na casa, os barulhos da casa, os movimentos, o entra e sai, porque é uma cidade movimentada e ruidosa. Tenho a sorte de fazer coisas ao mesmo tempo e, para mim, fazer um livro não é dizer: "Ai eu estou com um trabalho febril! Ai eu fiquei até às cinco da manhã! Ai eu todos os dias tenho que escrever x horas por dia!" Não. As coisas vão acontecendo, a vida vai rolando.
Por que é que não sente urgência? Na minha geração tudo é urgente, tudo tem de ser feito já. Às vezes até bloqueia um bocadinho.
Eu sinto que vocês são vítimas de uma ansiedade, à qual toda a gente chama "stress", o que é uma palavra banal, irritante. O ser corredor de fundo na vida faz que as coisas de facto vão acontecendo, tem é de ser estar com atenção a elas. Outra das coisas é que as pessoas dizem "Ai, a minha obra, ai o meu neném", obra nenhuma! Talvez os prémios Nobel tenham, ou o Camilo [Castelo Branco], que fez 70 livros ou o Nélson Évora ou a Rosa Mota. Cada pessoa nasce com uma aptidão, não é? Há pessoas que cozinham maravilhosamente, outras que sabem muito bem tratar dos animais, outras que sabem muito ser críticas de televisão, outras que comunicam ou outras que fazem meditação calada.
Tem saudades do Brasil? A imagem que criei do Brasil é a de um país onde os portugueses conseguem ser aquilo que gostavam de ser se não estivessem em Portugal.
O Manuel Bandeira diz que "o brasileiro é um português à solta". Quem diz coisas muito engraçadas sobre isso é o Agostinho da Silva. Outra grande descrição do Brasil, que é de um filho de uns amigos meus, é que viver no Brasil e voltar para Portugal é como vestir uma camisa número 42 e ter que, de repente, passar a vestir uma camisa número 38.
Compara-se muito, mas é absolutamente incomparável. O Brasil é uma coisa que marca para sempre, mas não podemos fingir que somos brasileiros, porque é outra cultura, são outros tempos, são outros espaços.
Apesar de ter "a camisa mais apertada", sente-se bem em Portugal?
Sim, eu adoro Portugal e Lisboa. Foi aqui que nasci é aqui que eu vivo. Mas eu estou no Rio hoje como estou em Lisboa. Todas as semanas, várias vezes por semana, tenho contactos muito próximos. Quando vim, escrevíamos cartas (e eu tenho-as todas guardadas). Hoje em dia, falamos muito nos Instagrams e no WhatsApp, ainda sei o que as pessoas fazem de almoço e de jantar, o que é que os filhos estudam, quanto é que custa um almoço ou um jantar, que festa é que houve ou vai haver.
Tenho uma relação muito emocionada com o Brasil. Sofro com o estado em que o Brasil está neste momento. As pessoas estão todas muito divididas e muito sofridas, não mereciam que isso acontecesse. Como dizia o Mário Castrim, para cada página virada – e o Brasil para os portugueses que lá estiveram nessa época, acabou, na prática, por ser uma página virada – há outra página que se abre para ser lida. Sinto-me muito feliz aqui.
Claro que morremos de saudades de coisas, de certos sabores, de certas situações, de certos lugares. Se eu chego a São Paulo e vejo que a casa em que eu vivi já não está lá, fico triste, não é? Mas penso: ainda bem que existiu. Eu saí 11 vezes em escolas de samba no Rio de Janeiro. Às vezes parece mentira, mas tenho cá as fantasias para me lembrar que não foi mentira! [risos]
"Tenho uma relação muito emocionada com o Brasil", diz
Parece que estou a falar com alguém da minha idade!
Mas é porque as pessoas da minha idade são muito chatas! Estão sempre no mesmo sofá, não aconteceu nada, têm os cabelos bola.
Mas como é que faz com aquilo que fisicamente a limita?
Ai o cancro! Eu fiz um livro [sobre isso], "Passageiro Clandestino". Se eu morrer amanhã, vou de barriga cheia. Acho que o cancro acabou por ser uma coisa boa que me aconteceu. Isto é uma estupidez assim dita, mas eu olho à minha roda e vejo as pessoas da minha idade, a quantidade [de pessoas] que já morreram. A quantidade que sofrem porque ouvem mal, porque vêem mal, porque têm dores nos ossos, porque têm diabetes, porque têm reumatismo terrível, porque têm insónias. Homens que têm as mulheres doentes, mulheres que têm os maridos chatos e reformados insuportáveis. Pessoas que já não podem guiar carros, pessoas que se enganam nas coisas, pessoas que tomam 20 remédios por dia.
Eu penso, e todos os dias dou graças a Deus, primeiro, por ser portuguesa e ainda haver um Serviço Nacional de Saúde. Segundo, por ver que não estou só. Tanta gente que vejo no IPO onde sou tratada, e no Curry Cabral, onde fui operada, a quantidade de pessoas doentes, como são tratadas, como têm acesso e isso aí eu comparo com o que se vê no Brasil de pobreza, de incompetência, de desgraça, de misérias. É evidente que já não tenho a mesma resistência que tive. Sim, a pessoa sofre um bocado, mas também Deus dá o frio conforme a roupa. Penso que uma experiência de cancro hoje em dia pode-se transformar numa doença crónica que dá uma certa consciência do sabor da vida. O não perder tempo com outras coisas.
A trabalhar para o "Diário de Notícias", no Rio
Com o que é que acha que se perde tempo?
Perde-se tempo com pessoas chatas. Perde-se tempo com coisas desinteressantes.
Pagar contas, mudar lâmpadas?
Mudar lâmpadas não tenho muito jeito. Pagar contas, vou pagando. Mas em que é que se perde tempo? Isso é uma grande pergunta. Acho que às vezes se perde tempo com coisas que não valem o nosso tempo. Uma das sabedorias da idade madura é saber qual é que é o nosso limite de tempo para as coisas e para as pessoas.
Eu posso-me entreter a fazer bainhas de umas calças largas, que se calhar há uns tempos eu não faria porque seria maçador, mas agora não. O estar entretido é um ganho de tempo. Sei lá, arrumar papéis. Tem-se uma disposição interior para coisas que não se tinha. Cada dia é uma peregrinação de uma hora a fazer estas coisas. Porque enquanto fazemos os nossos trabalhos de mão vamos pensando e digerindo. Mas eu sou boa de conversa existencial, eu acho.
Depois deste livro, tem mais projectos em vista?
Tenho. Eu fiz um livro que se chama "Portugueses no Brasil e Brasileiros de Portugal", que saiu no ano passado. Tenho entrevistas que fiz também, e quero fazer, de portugueses de Portugal e portugueses do mundo. Tenho, sei lá, a Paula Rego, ou o próprio Saramago, que é um português do mundo porque virou Prémio Nobel. Tenho também uma ficção começada. Mas vamos ver, não é, se tenho vida e saúde para.