"Sintoma de uma doença social". Migrantes são os novos consumidores de metadona em Lisboa
01-09-2023 - 14:00
 • Beatriz Lopes

Capital portuguesa também está a assistir a um aumento do uso de crack e consumo a céu aberto, indica psicólogo de IPSS que apoia toxicodependentes.

Os migrantes são os novos consumidores de metadona em Lisboa. Numa realidade que já não se via “há pelo menos cinco anos”, o consumo de droga a céu aberto voltou às ruas da capital e há um aumento de uma das drogas mais aditivas que se conhece: o crack, que "é cada vez mais acessível e barato". O alerta é da Associação Ares do Pinhal, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) que apoia toxicodependentes há mais de 30 anos.

Hugo Faria, psicólogo e um dos coordenadores associação, revela que "todas as equipas que trabalham na área concordam que o consumo de drogas aumentou" e "vê-se de novo consumos a céu aberto". A causa? A crise financeira e habitacional, impulsionadas pela pandemia e pela guerra.

"As populações mais vulneráveis são as mais afetadas. A pressão imobiliária que vivemos na cidade de Lisboa faz com que as respostas de alojamento sejam muito mais complicadas para as pessoas em situação de sem-abrigo ou que têm apoio da Santa Casa ou da Segurança Social para uma casa."

Para os profissionais que acompanham pessoas dependentes, "há uma dificuldade acrescida". Hugo Faria alerta que o aumento do consumo de crack "está a levar a mais descompensações psiquiátricas" e que "o comportamento das pessoas nas suas rotinas diárias passa a ser muito mais difícil de controlar".


Todos os dias são entre 1.300 a 1.400 os consumidores que recorrem às carrinhas de metadona em Lisboa, um programa que Hugo Faria classifica como "vantajoso" para quem consome heroína, já que "a metadona é um medicamento muito eficaz que permite que as pessoas estejam estáveis". A surpresa está nos novos consumidores: os migrantes.

"A principal população que tem vindo a aumentar nos nossos programas é oriunda da Ásia, nomeadamente da Índia e do Nepal. São pessoas mais jovens, sobretudos homens, com um perfil ligeiramente diferente do português. Em termos de média de idades, têm menos cerca de 10 anos, ou seja, têm à volta dos 35 anos", detalha Hugo Faria.

Alguns já consumiam na terra natal, mas o psicólogo sublinha que este é também o "sintoma de uma doença social".

"Estas pessoas vivem em Portugal em condições muito precárias, trabalham muito, sendo a heroína e os opiáceos um recurso para as primeiras alturas em que existem muitas vezes cansaço, dores no corpo...".

Também na sala de consumo assistido de drogas, vulgarmente conhecida como "sala de chuto", já são visíveis consumidores estrangeiros, mas os portugueses continuam a ser maioritários. Neste local, que permite o consumo de drogas com a vigilância de técnicos de saúde, passam todos os dias cerca de 160 pessoas.

"O perfil português que temos nos nossos projetos são cerca de 85% população masculina, 15% feminina, com idades a rondar os 46 anos. Acima de tudo, consomem drogas por via fumada (65% das pessoas), depois as injetáveis anda à volta dos 25% e 11% utilizam ambas."

Nova lei da droga "não promove consumo"

O psicólogo recusa a ideia de que Portugal esteja a promover o facilitismo com a nova lei da droga, que descriminaliza as drogas sintéticas e faz uma nova distinção entre tráfico e consumo. Para Hugo Faria, o diploma já promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa é sinal de que se está a "enfrentar melhor o assunto".

"Temos que partir do princípio que as pessoas consomem drogas, ponto Quer existam projetos, quer haja mais ou menos droga, há pessoas que vão sempre procurar e consumir drogas. Portanto, quanto melhores forem as condições de dignidade e de justiça para que estas pessoas possam ter aquilo que vão querer consumir, melhor estamos a enfrentar o assunto", defende.

O coordenador da associação Ares do Pinhal relembra que "uma pessoa não é presa por ser consumidor de drogas, mas sim por ser traficante" e que, por isso, seria mais seguro "comprar uma dose de droga num mercado regulado, por exemplo, do que num bairro associado à criminalidade".

Falta investimento para travar overdoses

Em 2021, as overdoses em Portugal atingiram o valor mais alto (74) dos últimos 12 anos, mais 45% face a 2020. De acordo com o Relatório Anual sobre a Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências, elaborado pelo SICAD, na maioria das overdoses, foi detetada a presença de cocaína, mas a metadona também teve um peso “atípico".

Para Hugo Faria, o aumento de overdoses "é um indicador claro de que o investimento não pode de todo abrandar - pelo contrário, tem que aumentar. Esta é uma batalha nossa".

"Mesmo os projetos que existem atualmente, seja as equipas de rua, seja a sala de consumo, seja o programa de metadona, estão claramente sub-orçamentados. Apesar de darmos grande resposta às populações que dependem do nosso trabalho, fazemo-lo em condições que não são incrivelmente justas", critica.

O coordenador da associação Ares do Pinhal alerta que, antes de tudo, é "vital" começar pela prevenção "de forma massiva" nas escolas. "Não é possível termos sociedades mais informadas em relação às drogas, a consumir menos ou a utilizar estas substâncias de uma forma mais segura, se as nossas populações não forem educadas".

A chave para uma boa prevenção está em "fazer-se um trabalho contínuo", com organizações a intervir junto da comunidade escolar. "Daquilo que eu sei, o enquadramento atualmente não é de todo o que existia por volta de 2004, com Planos Municipais de Prevenção Primária das Toxicodependências. Havia um investimento para que organizações fizessem este trabalho no terreno. Não podemos estar a fazer uma sessão numa escola num ano e os alunos do ano seguinte não terem essa possibilidade, não faz qualquer sentido".