Quem o conheceu ficou a saber que “Jesus é fantástico!” e que a sua presença real na Eucaristia, “ainda é mais fantástica”! Quem o conheceu, quem ele tratava independentemente da idade como “ó minha menina” e “ó meu menino” sabia que o Padre Dâmaso era “muito feliz”! Ele repetia-o vezes sem conta: “sim, muito, muito feliz” porque nas suas mãos via a maravilha de trazer “um pouco do céu para oferecer a cada um e a cada uma na terra” e essa maravilha era a causa da sua imensa felicidade.
Só é difícil explicar o que é um Santo aos que nunca tiveram a sorte de muitas vezes e ao longo de vários anos tomar o pequeno almoço ao lado dele. Acho que os companheiros do Companheiro (obra de recuperação de reclusos que fundou e que nos deixa…) também partilham comigo esta experiência.
E a cada um e a cada uma repetia “sejam felizes” como se fosse a nossa primeira obrigação nesta passagem pela Terra. Tal como o Papa se despediu do povo, logo na sua entrada no papado com um simples “adeus e bom almoço” ele despedia os fieis da sua missa não se limitando ao clássico “ide em paz…” mas acrescentando-lhe um “e sejam felizes!”.
Não admira que os seus melhores amigos fossem os que ainda estavam ou já tinham saído da prisão: “gente fantástica”, “gente como tu e como eu”, como ele acrescentava sempre: “gente fantástica” pelo simples facto de ser gente, fosse o que fosse que tivessem feito. Se houve prova encarnada do Amor infinito e misericordioso de Deus foi o nosso padre Dâmaso. Nosso, aqui na Renascença desde 76. Primeiro numa série semanal de três programas (dirigidos aos doentes, aos reclusos e ao cidadão comum) depois nos mais diversos programas incluindo madrugada dentro numa conversa de tu a tu com os ouvintes. A Rádio era o segundo amor da sua vida.
Partiu hoje para a casa do Pai. Não queria ir depressa. Gostava muito, muitíssimo de estar vivo! Gostava que a sua vida fosse o mais longa possível, porque aqui dava ideia de já estar plenamente com o Pai. Essa pessoa “fantástica” com a qual parecia ter-se encontrado num exato momento como se fosse desde sempre. Em agosto do ano passado, contava numa entrevista ao Readers Digest que sendo o mais novo de seis irmãos adoecera aos poucos meses e os pais o tinham entregue aos cuidados de Santa Teresinha, consagrando-o a Deus. Salvou-se. Aos sete anos fez a Primeira Comunhão e desde aí recebeu o Senhor todos os dias da sua vida. Aos 18, estava feita a escolha: seria padre.
Nascido em 1930 viveu como adolescente a experiência da II Guerra Mundial e, aos 27, chegou a Portugal onde se instalou num convento na Penha de França, onde estava a congregação dos “Sagrados do Coração de Jesus e Maria” de que fazia parte. A zona da cidade era pobre. As barracas eram muitas e espalhavam-se pelas encostas dos arredores. Começou na JOC com o trabalho social de acolhimento aos pobres e acabou a construir uma pequena capela para celebrar missa para eles no meio deles.
Um pouco mais tarde, viveu o seu período mais feliz como pregador dos Cursilhos de Cristandade cujo movimento praticamente ajudou a introduzir em Portugal. Dois ou três anos depois de chegar a Lisboa já era um pregador conhecido e o Padre João Gonçalves, que participara no movimento em Espanha, pediu-lhe ajuda para trazer o movimento para Portugal. Fê-lo durante muitos anos e experimentou com isso uma felicidade crescente, mas subitamente a hierarquia afastou-o desse trabalho.
Sentiu-se injustiçado e nem o seu sentido de perdão nem a sua obediência permitiram que essa ferida sarasse totalmente. Sempre que falava desse abandono, turvava-se-lhe o olhar.
Imagino que foi a única coisa que parecia imperdoável para aquele padre holandês a quem foi confiada logo depois uma paróquia itinerante: as prisões. Tantas vezes contou que não achou de inicio grande ideia, mas, pragmático como qualquer nórdico, acolheu obedientemente o pedido do Bispo. Educado num país protestante muita coisa continuou a fazer-lhe “confusão” no catolicismo “folclórico” que encontrou em Portugal, o país de que se fez um autêntico filho assumindo a dupla-nacionalidade.
Era tão ou mais português do que holandês. Embora a cerrada pronuncia o denunciasse a cada passo. Que importa. Teve durante anos a Renascença como a sua segunda paróquia na palestra diária que levava a cada um as palavras de consolo e companhia, noite dentro. Com um sotaque e uma linha de raciocínio inconfundível. Os ouvintes vinham procurá-lo à rádio.
Era pré-conciliar por idade e formação e pós-conciliar por temperamento. Não havia rótulo que se lhe aplicasse: nem conservador nem progressista era simplesmente ele. Indignado com os gastos que achava supérfluos enquanto os pobres necessitavam de ajuda não foi à inauguração do Cristo Rei em Almada. Tendo vivido a Segunda Guerra Mundial e sobrevivido, esta experiencia marcou-o para toda a vida: tinha pouca compreensão para um certo aparato ostensivo tido por natural na década de 50/60. O seu Rei dispensava colunatas que custavam milhares de escudos e poderiam ter sido reunidos para ajudar os pobres. Tornou-se incómodo.
Era grande devoto da Virgem Maria, mas era para ele quase incompreensível a religiosidade popular em torno de Nossa Senhora de Fátima. Escandalizava-o a ele, que levara anos a fio aos pobres a Imagem peregrina, que reduzissem a Mãe de Deus a uma ‘santinha’ a quem se vão apenas pedir graças e mais graças, quando ela viera implorar orações pelos outros, pela paz, pela conversão dos pecadores. Tinha um amor a toda a prova pela Mãe de Deus, mas no centro da sua fé estava o filho Salvador.
Havia mais: as festas e romarias, se ele “mandasse”, deviam ser proibidas! Sim, proibidas! Eram simplesmente “um disparate” que “fazia muito mal ao povo”, dando-lhes a falsa ideia de um Deus caricatural, afastava os fieis da verdade da fé. Os Santos Populares, então, eram muito difíceis para ele de aceitar: das marchas às sardinhas. Ficavam esquecidas, apagadas, a verdadeira figura de Pedro, o primeiro Papa, de João Baptista, o grande percursor de Jesus Cristo, e Santo António, o primeiro santo da ordem franciscana e Doutor da Igreja. Três homens sem nada a ver com bailaricos e bebedeiras ou festanças fúteis.
Para os católicos, homens como o padre Dâmaso, que dão um testemunho de humildade, e fé, que arrastam pelo exemplo e pela palavra e são capazes de nos mover a nós, aproximando o nosso coração de Cristo, são designados por ‘Santos’. Mesmo sem processo de beatificação ou de canonização, mesmo sem nenhum milagre relatado ou provado, e mesmo que tais processos nunca venham a ocorrer, arrisco-me a dizer que conheci um, o Padre Dâmaso Lambers. O padre que me mostrou como o encontro com Jesus é fantástico e a missa pode ser ainda “mais fantástica” e nós todos, sem exceção, detidos numa cadeia ou livres, mas igualmente pecadores somos alvo do mesmo amor do Pai e, por isso, temos “obrigação de ser felizes”.
O Padre Lambers que não gostava de pedir nada para não incomodar ninguém, nem mesmo a Deus porque só via razões para lhe dar graças, partiu com uma série de pedidos de todos nós … para apresentar a “despacho” ao Pai do Céu. Fá-lo-á certamente a contragosto e por puro Amor. Foi esse o segredo e o motor da sua vida.