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Dizendo prontamente ter “gosto em dizer tudo o que forem coisas sobre o assunto” - leia-se Papa -, Luis Miguel Cintra fala à Renascença no gosto pela vida, na “necessidade de ter um sentido”, e em como é “tonto” o medo que as pessoas têm de se enganar no que toca às questões da fé. Ao longo de uma carreira de quase 50 anos como actor e encenador, debateu-se sobre elas também nos palcos. A peça “Miserere”, a encenação “Fingir Verdadeiro” ou o filme “Acto da Primavera” de Manoel de Oliveira são exemplos disso mesmo: uma vida inteira de “interrogações sucessivas sobre o que era ter um credo”.
Estive a ler a entrevista que lhe fiz há três anos e a recordar o que falámos na altura, por ocasião de o Manoel de Oliveira ter ficado doente. Disse-me uma série de coisas que queria agora repescar para ver se ainda fazem sentido. Uma delas foi que “para a gente perceber alguma coisa da vida, é preciso perceber que a vida não é individual, é a vida da humanidade, é de tudo”. Gostava de aproveitar esta frase para lhe perguntar qual é a sua história de conversão pessoal.
Não houve propriamente uma conversão, porque convertido já estava desde o princípio.
Vamos então falar em reconversão...
Está bem. O que há é um período grande da vida em que andei demasiado metido em coisas concretas e muito importantes em si próprias e tudo isso, mas sem ter tido necessidade de ter um olhar mais distante e ao mesmo tempo mais íntimo…Olhar para perceber a pequenez de cada pessoa. É a necessidade de ter um sentido naquilo que a gente faz. Quando se começa a dizer isso, é com certeza quando a gente começa a pensar que já fez algumas coisas e que provavelmente vai haver uma altura em que pára. No fundo, as pessoas que têm este pensamento são as que gostam de viver, não é?
Em alguns espectáculos que fiz dei-me conta de alguns desses problemas, como o caso do “Auto da Alma” (a que a gente chamou “Miserere”), muito uma coisa de interrogações sucessivas sobre o que era ter um credo e o que era aceitar uma doutrina que foi já pensada. Coisas desse género já estavam nos meus espectáculos: o “Fingir Verdadeiro” baseado numa peça do Lope de Vega (mas que é a história de São Gens, um mártir), sobre um actor que se converte quando está a representar a figura de um católico. Porque representa tão bem, convence-se mesmo que é verdade aquilo em que está a acreditar como personagem. Tudo isso são coisas que se foram acrescentando e que acabaram por fazer mais sentido com o empurrão de algumas outras pessoas e circunstâncias da vida, voltando a estar inserido dentro da Igreja e a ir à missa; voltando a confessar-me, voltando a alguns dos preceitos que tradicionalmente fazem parte dos que são praticantes.
Foi muito importante assistir à reacção que as pessoas tiveram quando o padre Tolentino [Mendonça] me desafiou para fazer a apresentação de um livro dele de orações relacionado com o site Passo-a-Rezar (para o qual já me tinham convidado mas com o qual eu discordo completamente e de que não gosto nada)... Mas achei, “do padre Tolentino gosto, e das poesias que escreve também, muito”, portanto achei que devia aceitar o desafio.
"As pessoas reagiram tão bem, tão bem, tão bem àquilo que eu disse que até fiquei assustado."
Na sessão de apresentação, a minha posição era um bocadinho crítica em relação à Igreja, exprimia um desejo de que as pessoas não se sentissem oprimidas ou limitadas ou mesmo envergonhadas pela sua acção, mas que, pelo contrário, se sentissem estimuladas, contentes por pertencer. Padres como o padre Tolentino, e outros, porque não é só ele, davam a entender que era possível existir uma renovação da Igreja no sentido da fraternidade entre as pessoas; as pessoas se sentirem numa simplicidade absoluta e, sobretudo, a assunção dos princípios básicos do Cristianismo que tinham sido afogados na criação de uma estrutura de poder hierárquica.
As pessoas reagiram tão bem, tão bem, tão bem àquilo que eu disse que até fiquei assustado. As que estavam presentes diziam: “Mas tu disseste exactamente o que a gente pensa”. Inclusive alguns futuros sacerdotes, seminaristas que estavam e que me vieram abraçar de contentamento de alguém dizer uma coisa assim. Fiquei tão contente, porque percebi que de facto é um erro a gente pensar na Igreja como sendo o Vaticano, a estrutura de poder. A Igreja não é isso. A Igreja são todas as pessoas que acreditam. E, provavelmente mais até do que na hierarquia, o futuro da Igreja estará nas pessoas que acreditam mesmo ou que julgam acreditar.
Deu-se-me uma grande transformação nisso. Também fui ajudado muito pelo contacto com as quatro monjas dominicanas do Lumiar que têm um convento pequenino onde também costumo ir à missa. Muitas vezes converso com elas e às vezes convidam-me para almoçar. A gente convive também com pessoas que lá vão e que têm uma atitude simples, de igual para igual. No fundo, não há nada que meter medo, nem pode haver hierarquias numa coisa deste género. Ter uma posição religiosa e ter uma fé religiosa é uma coisa de uma extrema liberdade. Só se pode ter fé se se quiser. E se não quiser também ninguém tem nada com isso. É um terreno de liberdade pura numa coisa que tem a ver, a meu entender, com os conceitos de cidadania também.
A gente quando fala na política e em cidadania pensa numa maneira de organizar-se com os outros. É uma consciência de que somos uma sociedade e que há uma responsabilidade de toda a sociedade em cada cidadão. A responsabilidade existe em determinados temas e em determinados campos limitativos de todas as capacidades do ser humano. Quando se trata de uma fé religiosa, não. A responsabilidade é sobre tudo.
"Se a gente acredita que faz parte da criação de Deus, de que é parte integrante, tem uma responsabilidade gigantesca. Nem que seja por causa de acreditarmos que somos povo de Deus. Ora, uma obra de Deus não se vai portar muito mal, com certeza."
No caso mais explicitamente católico, tem a responsabilidade dos filhos de Deus. Da criação de Deus. Se a gente acredita que faz parte da criação de Deus, de que é parte integrante, tem uma responsabilidade gigantesca. Nem que seja por causa de acreditarmos que somos povo de Deus. Ora, uma obra de Deus não se vai portar muito mal, com certeza. E tem um sentido de responsabilidade enorme.
Falou no medo, agora há instantes; é o medo que afasta as pessoas. Como é que o Luis Miguel Cintra pode ter medo da estrutura da Igreja?
Eu falei em medo? Nem reparei. Mas é evidente que há um medo... Diga-me lá como é que eu falei em medo?
Agora mesmo - se calhar estou a tirar do contexto – mas falou naquilo que as pessoas sentem às vezes ao serem convidadas – no seu caso foi o Passo-a-Rezar, mas falo no medo de participar. Esse medo talvez de exprimirem a sua livre opinião.
Sim, sim, sobretudo as pessoas que estão ligadas à hierarquia da Igreja. Porque, isso tenho visto muitas vezes, que não podem, por causa dos votos que fizeram, não podem propriamente traí-los no sentido de começarem a ter um ponto de vista como se fosse exterior à Igreja e criticarem a Igreja. Isso não pode ser.
Por outro lado, é contraditório com a noção de Igreja tal como Cristo a transmitiu, ou pediu aos discípulos que transmitissem, a ideia de pessoas com medo de desobedecer. Se a gente pensar bem, foram os discípulos que inventaram toda a Igreja. E foram os discípulos que inventaram a própria religião como objecto de fé. Não foi Cristo que deixou escrito nalgum sítio.
“A ideia de pessoas com medo de desobedecer é contraditória com a noção de Igreja tal como Cristo pediu aos discípulos que transmitissem”
Os discípulos contaram que Ele disse, contaram que Ele fez, contaram que, perante isso tudo, nós os descendentes desse homem extraordinário podemos pensar determinadas coisas que ele terá proferido e a que terá dado um sentido com a sua presença na terra.
No fundo, quem formulou a religião cristã foram os discípulos de Cristo. Muitos deles não o conheceram. Alguns dos evangelistas não o conheceram. Não há razão nenhuma para ter receio de coisa nenhuma. Acho que as pessoas têm medo de se enganarem, mas é tonto esse medo de se enganar, porque realmente não é uma matéria comprovável, nada, e ninguém nos pode acusar de coisa nenhuma, a não ser de coisas que façam mal aos outros. Coisas que sejam violações do bom comportamento perante os outros cidadãos.
Coisa que aconteceu, por exemplo, na Inquisição em relação ao comportamento da Igreja. Não é difícil fazer a distinção se é um comportamento justificável religiosamente ou não. O que é preciso perceber é que estavam seres humanos a condenar outros seres humanos à morte, por serem de determinadas opiniões contrárias às deles. E isso é do mais anticristão que se possa imaginar. No entanto era uma coisa assumida como a tal autoridade, e as pessoas tinham medo da Inquisição. Isso é que não pode ser.
Uma coisa que me disse na entrevista antiga foi que "a nossa religião é uma religião em que o dado fundamental é que Deus foi homem, e isso é uma coisa muito importante. E é através da humanidade que se chega a Deus". A minha pergunta é porque é que para si é importante esta noção, ao invés de dizer, por exemplo, através da arte, do teatro, ou da literatura - tudo bem que são criações humanas - mas podem existir também num plano espiritual?
Isso funciona com o Manoel de Oliveira porque é uma posição muito paralela. Quando a gente vê o princípio do "Acto da Primavera", ele chama à filmagem da representação da Paixão de Cristo pelos camponeses daquela aldeia "Acto da Primavera". A Primavera é o nascimento disso tudo. É o regresso, é o ciclo da vida - a vida propriamente dita, essa coisa em que a gente está inserida e que vê à nossa volta. É um mistério tão grande e é uma coisa tão impossível de perceber que só pode ser divina. O encantamento com a vida em todos os seus aspectos é uma coisa que é sinónima da alegria. E o Manoel de Oliveira começa o “Acto da Primavera” dessa maneira, com uma espécie de invocação, tal como o São João faz, no princípio do Evangelho antes de haver o mundo – “no princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus”, e por aí adiante. Esse encantamento com a vida é que é o ponto de partida para mim.
“O Manoel de Oliveira começa o ‘Acto da Primavera’ com uma espécie de invocação, tal como o São João faz no princípio do Evangelho: ‘No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus’. Esse encantamento com a vida é para mim o ponto de partida.”
E como é tão misterioso, tão maravilhosamente misterioso e inexplicável, eu sinto a necessidade de considerar a vida divina. Com todas as contradições que tem e com todos os seus maus aspectos e tudo isso, porque também faz parte da vida...se fosse só de uma cor, provavelmente não era tão misteriosa. É exactamente essa complexidade dessa coisa esquisita: porquê? Porque se junta uma operação química que se estabelece entre duas células, uma masculina outra feminina? É bocado pouco explicação, não é?
Sim, é um bocadinho pobre.
No caso do homem então é uma coisa incrível. Mas mesmo nas plantas, e nos animais, e nisso tudo. São fenómenos extraordinários.
Vindo agora dar ao tema que é a razão de ser desta entrevista. Faz quatro anos da eleição do Papa Francisco. Aquilo que pensava há três anos em relação ao seu pontificado mantém-se? Disse-me: “Finalmente alguém tem a ousadia de mostrar coisas que são evidências para tantas pessoas”. Ainda pensa assim?
Penso, penso, até muito mais do que isso. Acho que foi uma coisa absolutamente extraordinária a eleição do Papa Francisco e acho que, no fundo, só foi preciso uma simplificação da atitude e uma desconstrução do lugar de poder dentro da hierarquia da Igreja. Fica claro, cada vez mais, que com um Papa que obviamente nega tudo aquilo que foi construído dentro dos eclesiásticos com a reprodução das relações de poder nos órgãos de poder - que não têm a ver com religião - quando o Papa nega isso; não dorme no Vaticano porque gosta mais de estar mais perto de outras pessoas que não têm tantas pompas, quer fugir, provavelmente, das intrigas que surgem no dia-a-dia. A sensação que dá é que não há nada a esconder nem a impor, e que o Papa é uma pessoa como as outras. A mim faz-me imenso sentido e ao mesmo tempo surpreende-me e encanta-me. Porque o esforço do Vaticano ao longo dos séculos foi sempre no sentido contrário: o de criar pompa, criar autoridade, criar admiração, criar mistério, no sentido de ser ilusionista. Criar milagres esquisitos e coisas que as pessoas não podem entender, para as pessoas se sentirem pequenas e o funcionalismo da Igreja se sentir grande.
Ora este Papa faz exactamente o contrário. O fundador da Igreja foi o São Pedro, que é o mais disparatado de todos os apóstolos. É aquele que se engana sempre, é aquele que trai e que se arrepende e que chora. São coisas que são tão humanas que é como se houvesse já ideia inicial dos membros da Igreja uma sensação de tolerância em nome de uma outra coisa muito mais importante do que a autoridade uns sobre os outros - o que a gente reconhece neste Papa. Depois o próprio facto de escolher o nome "Francisco", pensando no santo mais simples de todos, o São Francisco de Assis, é outra coisa. Está cheio de gestos simbólicos a toda a hora, o que também acho maravilhoso.
“Ser religioso é também isso: Convocar, através de um símbolo, pessoas que pensam coisas diferentes mas que estão de acordo no sentido básico daquilo que convocaram.”
De repente dá-se por isso: que uma das coisas que compete fazer aos Papas é justamente fazer gestos e atitudes, frases simbólicas. Na religião é com símbolos que falamos e com símbolos que pensamos. E ser religioso é também isso, é convocar, através de um símbolo, pessoas que pensam coisas diferentes mas que estão de acordo no sentido básico daquele símbolo que convocou.
Vamos ter o Papa em Fátima, em breve…
Fico encantado. Esta vinda a Fátima do Papa para mim provoca-me uma grande revolução dentro da minha cabeça, mas é uma coisa que acho fantástica de ousadia. Fátima é tida para muitas pessoas e muitos católicos que não são portugueses como uma questão duvidosa. Aconteceu-me isso durante muito tempo. E não só a mim, para gerações como a do meu pai. As pessoas hesitam porque lhes custa acreditar, primeiro, no que é um milagre. Acham, e com razão, que a Aparição da Virgem Maria, segundo aqueles pastores, naquele sítio, foi aproveitada como propaganda fascista e como maneira de manipular as pessoas, o que ultrapassou os próprios pastores.
Antigamente tinha repugnância em entrar no Santuário de Fátima, educado como fui por um católico muito praticante e muito sério como era o meu pai. O meu pai dizia-me: "Não vás a Fátima, não vás porque é uma coisa que te faz mal à cabeça". Mas eu já voltei a Fátima e não vou como irão outras pessoas que fazem promessas, que vão com uma crença num milagre dos pastorinhos e na aparição da Virgem Maria. Eu não sei se os pastorinhos viram a Virgem Maria ou se não viram a Virgem Maria... Não viram, com certeza, porque a gente não pode viver a meias - num sítio de uma maneira e noutro sítio de outra. Eu não posso acreditar no que diz a ciência e depois chegar ao dia 13 de Maio e acreditar que de repente apareceu a Virgem Maria no céu. Não faz parte da minha maneira de pensar na religião, é outro assunto. É como se fosse um truque de ilusionismo.
“O que eu sei que é verdade é que muitas centenas de milhares de pessoas acreditam de uma forma extremamente generosa, excedendo-se a si próprias, deixando-se ser irracionais até, na aparição da Nossa Senhora, e acreditam que ela é capaz de fazer milagres e de curar as pessoas. Isso merece-me um enormíssimo respeito.”
Mas o que eu sei que é verdade, e isso é que já faz parte da minha religião, é que muitas, muitas, muitas centenas de milhares de pessoas acreditam de uma forma extremamente generosa, excedendo-se a si próprias, deixando-se ser irracionais até, na aparição da Nossa Senhora, e acreditam que ela é capaz de fazer milagres e de curar as pessoas. Isso merece-me um enormíssimo respeito.
Acho que é preciso que a Igreja seja capaz até de ver como dentro de si própria existem coisas contraditórias. É um acto de generosidade muito mais pura do que noutros casos em que se mistura com o cinismo do mundo contemporâneo. A maneira de interpretar tudo como se fossem negócios. O utilitarismo das atitudes de toda a gente. Merece o máximo respeito que o Papa se desloque a Fátima ao mesmo tempo que está a fazer acreditar numa renovação da Igreja. Num sítio onde há uma das manifestações mais tradicionais, ou mais reaccionárias, se quiser, do Cristianismo, pratica um gesto simbólico com um valor imenso. Ainda maior admiração fico por ele.
Tinha visto uma vez na televisão a atitude do Papa nas festas de Nossa Senhora da Aparecida no Brasil. Havia uma negra que vinha com uma criança e com uma imagem, uma confusão assim de coisas obviamente de pouca natureza religiosa e mais de curandeiros e coisas menos puras (julgamos nós! Com a nossa inteligência de se querer superior!) O Papa não se preocupou naquele momento com a Nossa Senhora da Aparecida nem com a imagem da Nossa Senhora preta nem nada dessas coisas. O que se preocupou foi com aquela criatura que vinha ter com ele a pedir-lhe para benzer o filho. Com um ar de que não se importava nada de ser visto de certa maneira, a negar a solenidade mágica da festa em que estava inserido. Isto acho fantástico.
O Luis Miguel já teve alguma vez oportunidade de se encontrar com o Papa Francisco?
Não, não estive não. Isso não. Não me importava nada de estar, mas não estive. Quando esteve cá o anterior Papa, o Bento XVI, fui convidado para a sessão em que ele recebeu os intelectuais e em que eu achei que não queria ir. Achei que era uma sessão demasiado mundana para o que eu achava naquela altura de dúvidas e de afirmação de um regresso ao catolicismo que era um bocadinho problemático para mim. Estar a ir beijar a mão ao Papa, eu achava que não fazia sentido. E disse: eu tenho de ter a coragem de não ir. E não fui.
Depois vi aparecer o Manoel de Oliveira. Que fez exactamente igual ao que eu tinha feito no filme dele sobre o padre António Vieira, com ele no lugar do Vieira e o Bento XVI no lugar do Papa de então em Roma [risos]. De repente disse assim; "Oh meu Deus, então mas estas pessoas ensinam as coisas umas às outras, agora que vi ali o Manoel de Oliveira naquilo, já me arrependo de não ter estado!". Escrevi ao Manoel de Oliveira uma longa carta a dizer isso: "Ó Manel, desculpe, mas quando o vi lá a conhecer o meu Papa, fiquei com pena de não ter ido ao beija-mão”. Ele depois respondeu-me assim: “Pois, foi pena se calhar não ir, mas olhe, nem tudo está perdido, porque o resultado de não ter ido foi uma bela carta que eu recebi por ocasião disso!". E era a minha carta [risos].
Lembro-me de me ter contado esta história e de me ter dito que o Manoel de Oliveira disse: “Lembre-se da frase do padre António Vieira, ‘terrível palavra é o non’”. Para fechar, pergunto-lhe se a eleição do Papa Francisco coincide com o seu momento de reaproximação à Igreja, e se os dois momentos estão ligados.
A minha ligação à Igreja é prévia.
Pois.
Foi se calhar um milagre que me fizeram. Lá no céu. [risos]
E agora, está mais "sim" do que "non"...?
Sim, sim. Há uma coisa que a gente vai aprendendo a pouco a pouco, que é a aceitar as dúvidas e a aceitar a humildade como maneira de viver. Porque o corpo também envelhece, a gente percebe que não é superforte como acredita que é em determinada altura da vida, começa a perceber que fez muitas confusões, enganou-se muitas vezes, mas muitas vezes não se enganou. Tudo isso dá uma relação mais tranquila e mais confiante com essas coisas da fé.
Perante a narrativa dos milagres, a coisa mais importante é sempre a frase de Cristo: “A tua fé te salvou”.
Nunca me esqueço, em relação a essa coisa dos milagres, que o próprio rapaz que fazia de Jesus Cristo no filme do Pasolini [“O Evangelho segundo São Mateus”, 1964] conta esta história: que o Pasolini, quando chegou a essa altura de filmar os milagres, teve uma crise nas filmagens porque até à última da hora não sabia se havia de filmar ou não porque não acreditava em milagre. Como é que podia, não acreditando em milagres, ir filmá-los? Acabou por decidir filmá-los como fazendo parte da narrativa do que pensaram aquelas pessoas que escreveram os evangelhos e que acreditaram que era um milagre.
Perante a narrativa dos milagres, a coisa mais importante é sempre a frase de Cristo: “A tua fé te salvou”. Porque é tão subjectivo. É dizer, não fui eu que te salvei, foi aquilo em que tu acreditaste. Não interessa se é verdade ou se é mentira, interessa é se a pessoa acreditou, e isto é uma lição muito importante. Para que isso aconteça, é preciso haver uma liberdade de escolha e de atitude que a própria Igreja estimule, para que as pessoas sintam que não precisam de deixar de ser católicos para estarem contra.
O Papa está farto de dizer isso. Os debates sobre a própria Igreja têm lugar e têm que ter lugar dentro da própria Igreja, porque há outra coisa mais importante do que tudo: a fé.