O Conselho da Europa classifica-a como uma forma de violência de género e a Organização Mundial da Saúde (OMS) já há muito que a considera uma violação dos direitos humanos. A violência obstétrica é o tema em debate no programa Em Nome da Lei, da Renascença.
Um inquérito, feito em 2015 pela Associação Portuguesa pelos Direitos das Mulheres na Gravidez e no Parto, revela que 40% das mais de três mil mulheres entrevistadas denunciaram atos passíveis de serem considerados violência obstétrica. Uma consulta posterior, feita pela mesma entidade, revela que 30% das mulheres consideram ter sido vítima de desrespeito, abuso ou discriminação.
A advogada Mia Negrão acusa a Direção-Geral de Saúde (DGS) de “praticar violência obstétrica, ao impedir as grávidas de levarem acompanhante para os hospitais no início da pandemia”.
Mas impedir as grávidas de serem acompanhadas no parto por um familiar é só um exemplo da violência obstétrica que, segundo Mia Negrão, é praticada em Portugal.
A representante da Associação das Mulheres Juristas diz que “a falta de humanização dos hospitais portugueses, públicos ou privados, passa por não dar opções de escolha à mulher sobre o parto que quer ter".
“Vejamos o que acontece nos casos de partos de baixo risco. Aquilo que acontece em todos os hospitais em Portugal neste momento, sejam públicos ou privados, é que uma grávida dá entrada no serviço e dizem-lhe logo que é obrigatório canalizar a veia, é obrigatório um toque vaginal da admissão, é obrigatório fazer CTG.”
“Desrespeito pela vontade da mulher”
Também Carla Santos, do movimento “EuVivo”, defende que a violência obstétrica nos hospitais portugueses consiste “sobretudo no desrespeito pela vontade da mulher”.
Tanto Carla Santos como Mia Negrão argumentam que “não estão a lutar contra os médicos ou contra os profissionais de saúde, em geral. Mas sim contra um sistema que não dá alternativas e não respeita a vontade da mulher”.
Álvaro Cohen, chefe das urgências de obstetrícia da Maternidade Alfredo da Costa, admite que “é preciso humanizar mais os serviços, mas rejeita a ideia de que atualmente haja violência obstétrica nas salas de parto nacionais.
O obstetra argumenta que “a Medicina mudou muito nos últimos anos, quer na atitude dos técnicos de saúde quer nos meios que são disponibilizados às grávidas”.
Em concreto, quanto ao consentimento da mulher, lembra que Portugal ratificou a Convenção de Oviedo, em 1999, sendo que o consentimento informado só passou a fazer parte do processo clínico alguns anos mais tarde. Mas hoje em dia nenhum ato médico é feito sem que o doente tenha assinado um consentimento informado”.
Álvaro Cohen argumenta, no entanto, que “muitas vezes não se consegue antecipar o que vai correr mal. E a intervenção num parto é sempre algo de dramático e em que a rapidez pode fazer a diferença” entre a vida ou a morte do bebé. Com uma tal urgência, “não há tempo para explicar à grávida todos os procedimentos que é preciso seguir”.
“Estamos a cair no extremismo”
A Ordem dos Médicos desvaloriza o problema da violência obstétrica e nega ter recebido qualquer queixa sobre o que considera serem más práticas médicas, nomeadamente, sobre a episiotomia de rotina, que consiste numa incisão na região do períneo para ampliar o canal de parto e que pode deixar várias sequelas à mulher.
Carla Santos, do movimento “Eu Vivo”, explica o facto de a Ordem alegar não ter queixas sobre violência obstétrica “por razões de semântica”. Defende que “como a Ordem dos Médicos recusa a existência do fenómeno, as queixas não são registadas como tal. E só por essa razão diz que não tem queixas”.
Por seu turno, a deputada Cristina Rodrigues argumenta que “Portugal tem uma das taxas mais altas de episiotomias ao nível europeu, em contraste com o que sucede em países como a Dinamarca”
Citando dados do relatório primavera 2018 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, Cristina Rodrigues explica que o país nórdico tem a taxa mais baixa (3,7%), que contrasta com os 73% de Portugal”.
O obstetra Álvaro Cohen e a Ordem dos Médicos consideram “os números disparatados”. O presidente do Colégio de Obstetrícia João Bernardes lamenta que não haja “estatísticas fiáveis de saúde em Portugal” e garante que “a percentagem de episiotomias não é de mais de 70%. Mas apenas metade dessa percentagem”. Baseia-se para tanto “na plataforma de dados que está disponível nos hospitais que já estão informatizados”.
Cristina Rodrigues, que chegou a apresentar um projeto de lei para criminalizar a violência obstétrica, lamenta que a Ordem dos Médicos não reconheça o problema. A deputada independente alega que “a criminalização é importante para haver um reconhecimento da censurabilidade deste tipo de condutas”. E adianta que propostas similares à que apresentou, e que caiu com o fim da legislatura, “estão a ser discutidas em Espanha e em Itália”.
O obstetra Álvaro Cohen contrapõe que “estamos a cair no radicalismo e no extremismo, a seguir vamos ter uma violência cardiológica, depois uma violência anestesiológica. Estamos a ir por um caminho que não leva a sítio nenhum. Quando o que importa verdadeiramente é humanizar os cuidados de saúde”, concluiu.
Pode ouvir o programa Em Nome da Lei aos sábados, depois do meio-dia, na antena da Renascença.