Em cada 100 presumíveis incendiários, 89 são homens e 11 mulheres. Do total, 13 estão desempregados, oito trabalham na agricultura ou pastorícia, sete estão reformados e outros sete trabalham na construção civil.
Nos mesmos 100 suspeitos, 70 abandonam o local logo após atearem o incêndio, contra 16 que permanecem no local, sete que voltam ao incêndio com a chegada dos bombeiros e três que chegam mesmo a ajudar no combate às chamas.
Ainda na mesma amostra de 100 alegados incendiários, 86 não têm antecedentes criminais, oito já foram condenados por crimes de incêndio, três têm condenações por crimes violentos, 35 não conhecem os proprietários dos terrenos que incendeiam e 16 são vizinhos das vítimas.
Homens vs. mulheres
Na caracterização sociopsicológica do incendiário português, encontram-se ainda diferenças entre homens e mulheres.
Dos 89 homens por cada 100 presumíveis incendiários, 75 são solteiros e 11 divorciados, 56 apresentam défices cognitivos e 44 problemas de dependência de álcool. Aliás, em cada 100 do sexo masculino, 58 estavam alcoolizados no momento do crime.
Já as mulheres apresentam características diferentes: 60% são casadas, quase 67% estão diagnosticadas com depressão e 33% apresentam défice cognitivo. No momento do crime, apenas 2% estão sob a influência do álcool.
Na sua maioria, as presumíveis incendiárias integram famílias disfuncionais, possuem fracas competências sociais, têm atividades profissionais de subsistência e os fogos que provocam ocorrem perto do seu local de trabalho ou residência.
Cristina Soeiro, responsável pelo gabinete de psicologia do Instituto Nacional de Ciências Criminais da Polícia Judiciária (PJ), identifica claramente as diferenças entre homens e mulheres.
“Enquanto nos homens há um grupo substancial, embora não representativo, há atração pelo fogo, nas mulheres isso não surge”, explica à Renascença. “As mulheres são muito mais homogéneas nos comportamentos de incendiarismo, não se interessam pelo fogo, nem pelo combate, nem ajudam os bombeiros ou voltam quando eles chegam. Não se interessam nada por esse aparato.”
Ao contrário dos homens, a maioria dos crimes de incêndio que cometem “são de natureza expressiva, ou seja, têm a ver com questões internas, emocionais”.
Fogos intencionais
Para explicar o crime de fogo posto, as estatísticas apontam apenas meia dúzia de razões, quase sempre as mesmas ao longo das décadas.
A mais comum, que corresponde ao maior grupo de indivíduos detidos por este tipo de crime, está relacionada com problemas de saúde mental e consumo de álcool, adianta Cristina Soeiro.
“63% dos indivíduos estão dentro deste grupo da histórica clínica, têm associados indicadores de défice cognitivos ou demência alcoólica e denotam dificuldade de integração na comunidade. Geralmente não estão integrados numa família estrutura, muitas vezes vivem sozinhos, em condições de clara necessidade de subsistência.”
Com uma expressão muito menor está outro tipo de explicação e um outro grupo de pessoas, as que usam o fogo nas suas atividades diárias. “É um grupo que representa 40% e a quem nós demos o nome de ‘Benefício’, que são aquelas pessoas que até trabalham numa profissão não muito diferenciada mas que estão por trás de incêndios que resultam da maneira como interagem com a floresta no seu quotidiano”, com os fogos a decorrerem da sua necessidade de “pastorícia ou N coisas diversificadas”, explica a responsável da PJ.
Nesta lista de potenciais explicações surgem, por exemplo, as vinganças, que têm vindo a diminuir, acrescenta. “Dantes tínhamos cerca de 13% e agora, nos últimos anos, estes casos foram reduzindo para 7%. São aqueles indivíduos que, na prática do seu dia-a-dia, se vingam das outras pessoas, ou por causa de um problema de terras com a família ou de vizinhanças.”
Pelo contrário, está a aumentar o número de incendiários que justifica os seus atos com a atração pelo fogo, contando-se neste grupo os que nunca abandonam o local ou que voltam mais tarde ao mesmo tempo que os bombeiros para ajudar no combate.
“O grupo a que chamamos ‘atração pelo fogo’ representa 40%, são aqueles indivíduos que ficam a ver arder, voltam com o combate, ajudam os bombeiros. É a esse grupo que nós estamos a dar mais atenção há algum tempo”, em parte por incluir pessoas mais jovens. “Queremos perceber melhor.”
E quando são apanhados?
Nos interrogatórios judiciais, e mais tarde nas conversas com os psicólogos da PJ, os detidos por suspeita de fogo posto têm quase sempre explicações muito simples.
“Temos todas estas pessoas que assumem que fizeram, mas que dizem que a intenção não era pegar aquele fogo tão grande, que só são responsáveis pela zona”, explica Cristina Soeiro.
Nesse contexto, os investigadores e psicólogos da PJ fazem a distinção entre o incêndio físico e o incêndio psicológico, com os suspeitos a dizerem que não são responsáveis pelas proporções que o fogo atinge. “Dizem ‘Não, não, porque as condições do tempo é que levaram a que isto tomasse estas proporções, eu só queria mesmo era queimar ali aquela terra do meu vizinho, mas depois não mando no S. Pedro, está a perceber?’. Outros dizem ‘A doutora está a fazer-me essas perguntas, mas eu não matei ninguém.’”
Este fenómeno, explica a psicóloga da PJ, “já existe com esta representatividade desde 1997”, quando o gabinete que dirige começou a monitorizar os crimes relacionados com incêndios. O que continua sem aparecer desde essa altura são explicações mais elaboradas, relacionadas com crime organizado ou em que os suspeitos são movidos por interesses económicos, recorrendo a métodos mais sofisticados.
Há 20 anos envolvida neste tipo de estudos, Cristina Soeiro diz que nunca lidou com um caso desses. “Este nosso estudo iniciou-se em 1997, com outro formato. Do ponto de vista científico, não temos essa perspetiva, de todo. Tratamos os dados da PJ e o que lhe posso dizer é que não temos evidência desse tipo de realidade.”
Novas abordagens precisam-se
O primeiro objetivo do Gabinete de Psicologia da PJ é ajudar os inspetores que andam no terreno a investigar as causas e os autores dos incêndios, pelo que este tipo de dados e listagem de indivíduos em risco, referindo a sua distribuição geográfica e respetivo historial, servem de enquadramento fundamental para quem procura relacionar os factos.
Quanto mais completo for este trabalho, mais útil será aos investigadores. É por isso que Cristina Soeiro e a sua equipa têm procurado um rigor e detalhe cada vez maiores nas explicações deste crime. É também por isso que entrevistaram todos os 258 incendiários que a PJ deteve nos últimos três anos, tendo recolhido novos dados para análise nessas conversas, na sua maioria decorridas em ambiente prisional.
Uma das questões que surgiram no decorrer dessas conversas, explica Soeiro, foi até que ponto as questões de saúde mental estão ligadas ao crime e o que é representam no comportamento de incêndio.
“Se calhar estamos aqui a meter no mesmo bolo problemas que são diferentes”, adianta a especialista. Por exemplo, “estamos a confundir consumo [de álcool] com incendiarismo. Se calhar o consumo é meramente um facilitador mas o incêndio resultado de uma prática do dia-a-dia. Uma coisa não é obrigatoriamente a causa da outra e temos de perceber isso”.
Para Cristina Soeiro, são precisas novas abordagens do problema, entre outras envolvendo a área da saúde mental. A taxa de reincidência demonstra que é preciso tratar o assunto de outra forma e não apenas ao nível das polícias e dos juízes.
“A prisão preventiva é um mecanismo muito importante para remover a pessoa de um cenário de risco de reincidência momentâneo durante o verão, mas depois alguns destes casos surgem no ano seguinte”, aponta a psicóloga. “Temos aqui anos em que a nossa taxa de indivíduos que já estavam no sistema no ano anterior chegou aos 12%, 13%, indivíduos com historial clínico, porque de facto têm estas problemáticas associadas à sua dificuldade de integração, aos consumos, às dependências e aos problemas mentais. A intervenção neste grupo tem de ser mais alargada e é fundamental que tenha uma coadjuvante com a saúde mental.”