Há acordo à esquerda, para penalizar a ocultação de património por parte dos políticos e altos cargos públicos. O deputado comunista António Filipe admite que “nesta legislatura há finalmente condições para aprovar a medida porque não existe uma maioria [PSD/CDS] que possa impor novamente a solução do enriquecimento ilícito, já chumbada duas vezes pelo Tribunal Constitucional, nem existe uma maioria que possa inviabilizar” a solução que está em cima da mesa.
Também o Bloco de Esquerda entende que, “finalmente, a questão está colocada sob o ângulo certo. Não se trata de olhar para o património e presumir que é ilícito. Mas impor ao titular de cargo público ou político, além do dever de o declarar, também o de fundamentar a sua origem”, esclarece o deputado José Manuel Pureza, para quem “pouco importa que o BE tenha apresentado primeiro que o PS a sua solução legislativa; o que interessa é que haja consenso sobre a matéria”.
Atualmente, os deputados e outros titulares de cargos públicos e políticos já estão obrigados a apresentar as suas declarações patrimoniais e, se não cumprirem, podem incorrer no crime de enriquecimento não declarado, aplicável no caso de omissões superiores a 50 salários mínimos mensais.
Do que se trata agora é impor uma nova obrigação de justificar a proveniência do que entretanto os políticos e titulares de cargos públicos adquirirem enquanto estão em funções e que não seja compatível com o rendimento auferido pelas funções públicas que desempenham.
A proposta partiu originalmente da Associação Sindical dos Juízes, como solução para o facto de o crime de enriquecimento ilícito ter batido duas vezes na trave do Tribunal Constitucional (2012 e 2015), porque as soluções legislativas apresentadas invertiam o ónus da prova.
Ou seja, não seria quem acusa mas quem é acusado a ter de provar não ter cometido o crime – uma prova muito mais difícil e que põe em causa o princípio da presunção de inocência.
O advogado Magalhães e Silva, que chegou a apresentar no Parlamento uma solução legislativa em que o BE e o PCP também se inspiraram, diz na Renascença que “o consenso se chama Processo Sócrates”.
Para o jurista que foi assessor de Jorge Sampaio, “criou-se um ambiente tal à volta da corrupção, que não há espaço para nenhuma formação política recusar este tipo de soluções”. E acrescenta: “Não deixa de ser interessante que a medida não conste da Estratégia Nacional contra a Corrupção, tendo sido dito [pela ministra da Justiça] que o que havia na lei era mais do que suficiente.”
Poderá ter sido a leitura do debate instrutório do processo em que José Sócrates é o principal arguido a pressionar os deputados a legislar sobre a ocultação de património. Mas, “mesmo que a legislação estivesse aprovada à data dos factos de corrupção alegadamente praticados pelo ex-primeiro-ministro, ela não teria impedido os crimes”, defende advogada e deputada Mónica Quintela.
A porta-voz de Rui Rio para a área da Justiça entende que “com qualquer das versões sobre o enriquecimento ilícito que já foram apresentadas [inclusive as duas que foram iniciativa do PSD e que foram chumbadas pelo TC em 2012 e 2015], o engenheiro Sócrates e os seus afins não eram apanhados.”
Mónica Quintela entende que “isto é muito importante apenas para o debate que se está a travar na opinião pública. O dinheiro que José Sócrates recebeu do amigo Santos Silva veio para Portugal ao abrigo dos regimes dos perdões fiscais, portanto, estava mais do que legalizado e justificado”, destaca no programa Em Nome da Lei.
PS rejeita relação entre caso Sócrates e diploma
A deputada do PS Isabel Oneto rejeita qualquer raciocínio que estabeleça uma relação entre o processo judicial que envolve o antigo primeiro-ministro e a iniciativa legislativa apresentada esta semana pela bancada socialista.
O projeto de lei do PS prevê que “o político que não declare os rendimentos e não justifique a sua origem incorre numa pena que pode ir até aos cinco anos de prisão e os bens ocultados são sujeitos a tributação, em sede de IRS, de 80%”, explica.
Quando lhe é perguntado que tipo de comprovativos serão exigidos para justificar a origem do dinheiro, a deputada diz que “se alguém recebe, por exemplo, uma herança, haverá naturalmente documentação que comprove esse aumento patrimonial. Há sempre uma situação que permite identificar a origem desse incremento. E é isso que é necessário justificar”, responde.
Se essa justificação não for feita, o político ou titular de alto cargo “incorre numa pena que vai de um a cinco anos de cadeia e os rendimentos ocultados serão taxados, em sede tributária, a 80%”.
Bloco que ir mais longe
Sobre esta penalização do património não declarado, o Bloco de Esquerda gostaria de ir mais longe. O seu projeto de lei prevê que reverta totalmente a favor do Estado, devendo por isso ser taxado a 100%”.
Não será isso confisco? José Manuel Pureza admite que “esse foi o entendimento quando, em 2016, apresentaram pela primeira vez essa solução para penalizar em sede tributária os rendimentos ocultados. O BE insiste, no entanto, na proposta tendo em conta que estamos perante rendimento injustificado e, assim sendo, faz todo o sentido que reverta integralmente a favor do Estado”.
O deputado bloquista admite, no entanto, que “não será por aí” que não haverá acordo entre os partidos à esquerda do hemiciclo.
Comunistas querem mais
O PCP gostaria que os deveres declaratórios e da origem do dinheiro não fossem apenas aplicáveis aos políticos e altos titulares de cargos políticos, mas extensivos a qualquer pessoa que tenha rendimentos acima dos 400 salários mínimos mensais (cerca de 266 mil euros).
Os comunistas não fazem, no entanto, finca pé na ideia, de resto já antes chumbada pelo Tribunal Constitucional. O deputado António Filipe garante que “qualquer solução que signifique um avanço relativamente ao que já existe terá o apoio do PCP”.
São declarações ao programa de Informação da Renascença Em Nome da Lei, emitido ao sábado ao meio-dia e repetido às 24h00.