Como católico, o fim do Roe vs. Wade não me deixa descansado (pelo contrário)
01-07-2022 - 07:55

Lamento, mas o alegado amor pelo “unborn” (bebé por nascer) está a legitimar o ódio contra migrantes, emigrantes, negros, ciganos, muçulmanos, mulheres emancipadas, famílias diferentes, homossexuais e está a legitimar a paixão por líderes fascistas, pelas penas de morte e até por armas. Que raio de defesa da vida é esta?

Em primeiro lugar, mais mulheres vão morrer, já estão a morrer – repito: já estão a morrer - porque não têm acesso a cuidados médicos quando, na verdade, estão a passar por situações em que o aborto é uma necessidade médica ou em que o aborto é espontâneo. Não percebo como é que se defende a vida através de uma decisão que põe em risco a vida de tantas mulheres, aqui e agora. O “unborn” não é mais importante do que a mãe. Se tiver problemas de saúde graves relacionados com a gravidez, a mulher pode e deve abortar. Está na velha lei judaica. Está no bom senso. E, se for violada, a mulher pode obviamente abortar sem qualquer pergunta. Mas, agora, não pode devido ao caos legal criado e podemos chegar à situação em que em alguns estados nunca mais poderá abortar mesmo em casos de violação ou de doença grave. E isto, meus caros, não é defesa da vida. Ou melhor, é a defesa de uma Vida abstrata que destrói vidas concretas de mulheres.

Em segundo lugar, há pessoas que entram no pensamento mágico e que dizem que a proibição do aborto trava o número de abortos. Não. Isto é uma utopia que não existe na realidade. Isso não é defesa da vida, é uma ingénua negação da realidade (denial) ou é uma cínica hipocrisia, porque atira o problema para as margens escondidas. Uma lei contra o aborto não consegue proibir os abortos, só proíbe os abortos seguros. Nós não vivemos no paraíso, nós não estamos na utopia prometida, estamos aqui em baixo no mundo caído e imperfeito onde algumas mulheres são empurradas para esta decisão terrível (é sempre uma decisão terrível) por uma série de contingências que nunca terá fim. Como católico, eu tenho de fazer tudo para afastar as pessoas dessa decisão, mas tenho de ter consciência de uma coisa: se decide fazer um aborto, uma mulher assustada (e sentindo-se sozinha) vai fazê-lo de qualquer maneira – é o que nos diz a realidade histórica. Proibir e tornar o aborto inseguro perante este padrão é o mesmo que provocar morte e doença nas mulheres. É preciso uma dose enorme de hipocrisia para esconder os olhos e fingir que não existe o aborto clandestino que mata e mutila mulheres. Estas raparigas merecem sofrer e morrer? Porquê? Porque não têm as vidinhas perfeitas na carteira e na teologia? A partir do promontório da vida fácil, estruturada, endinheirada, é muito fácil ser moralista contra uma mulher que abortou no meio do caos que são as vidas fora desse promontório. É fácil e muito errado e muito pouco católico. A vida é caótica e quem está nesse caos precisa do amor e da compreensão dos cristãos, não de moralismos ou sentenças de morte médicas ou sentenças de prisão.

Em terceiro lugar, o aborto não é um direito e é de certeza um mal, mas pode ser o mal menor e não é de certeza um crime se for praticado antes de x semanas. Nem todos os males passam à condição de crime. O adultério é um mal terrível que destrói famílias, mas não é considerado um crime.

Em quarto lugar, a defesa da vida vai muito além da questão do aborto, há muitos outros pontos. E o problema, parece-me, é que muitos dos alegados “defensores da vida” estão entre os grandes defensores da morte e do ódio nos outros pontos. Há um perfil mental no alegado “defensor da vida” nos EUA e cá: diz que ama o “unborn”, o bebé por nascer, mas depois odeia emigrantes, ciganos, negros, gosta de armas, defende ou namora com penas de morte, odeia homossexuais e transgénero, e odeia sobretudo mulheres independentes e homens que defendem essa emancipação da mulher.

O que me choca, confesso, é que o “unborn” é usado por este movimento da mesma forma que outras palavras foram e são usadas pelas esquerdas radicais: é uma utopia colocada no futuro (o “unborn” ainda não nasceu) e esse futuro risonho é usado como arma de ódio contra o presente, contra as pessoas já nascidas que vivem aqui e agora.

Ama-se a Humanidade num futuro próximo para se conseguir odiar as pessoas concretas aqui e agora. Lamento, mas o alegado amor pelo “unborn” (bebé por nascer) está a legitimar o ódio contra migrantes, emigrantes, negros, ciganos, muçulmanos, mulheres emancipadas, famílias diferentes, homossexuais e está a legitimar a paixão por líderes fascistas, pelas penas de morte e até por armas. Que raio de defesa da vida é esta?