A escassez de vacinas contra a Covid-19 fez suscitar a questão da proteção das patentes que permite às farmacêuticas, como a Pfizer/BioNTech, a Moderna e a AstraZeneca, ter o exclusivo da sua produção e distribuição.
A indústria está a produzir abaixo do que contratualizou com a Comissão Europeia e até agora não respondeu ao apelo feito pela OMS para integrar a plataforma de partilha de tecnologia. Há, por isso ,quem exija que as patentes devem ser levantadas.
Esta semana ficamos a saber que a AstraZeneca, que produz a vacina mais barata das três atualmente disponíveis e a quem Portugal comprou mais doses, só conseguirá entregar à Europa metade das vacinas que tinha contratualizado para o segundo trimestre do ano: só 90 milhões, em vez dos 180 milhões de doses que estavam combinadas.
Uma informação que põe em causa o objetivo de ter 70% da população vacinada durante o verão, patamar a partir do qual se espera poder atingir a chama imunidade de grupo.
Quanto mais tempo demorar a criar a imunidade de grupo, mais variantes surgem e mais resistente se torna o vírus. Há por isso quem defenda que é preciso romper as patentes e começar a produzir em massa a desejada vacina. A OMS já o propôs. Os Médicos Sem Fronteiras defendem que é a única forma de a vacina contra a Covid-19 chegar aos países mais pobres. Em Portugal, o Bloco de Esquerda e o PCP argumentam que o lucro das farmacêuticas não pode valer mais do que a saúde das populações.
O eurodeputado do Bloco de Esquerda José Gusmão defende que “a escassez de vacinas nada tem que ver com falta de capacidade de produção, como diz a indústria. Lembra que as farmacêuticas foram financiadas por fundos públicos, nomeadamente da União Europeia, e defende que os Estados têm instrumentos jurídicos para obrigar as farmacêuticas a partilhar a sua tecnologia. Diz por isso que “o mundo não está refém das farmacêuticas”.
O advogado Gonçalo Sampaio partilha da ideia de que os Estados têm efetivamente instrumentos jurídicos para obrigar as farmacêuticas a partilhar a tecnologia das vacinas contra a Covid-19.
O especialista em propriedade industrial explica que “a lei portuguesa, que corresponde ao modelo europeu, prevê quer a expropriação da patente quer a possibilidade de haver licenças obrigatórias, quando aconteça, como é o caso, uma situação de emergência de saúde pública”.
Gonçalo Sampaio adverte, no entanto, que estamos a falar de expropriar direitos que ainda nem existem. “Processos inventivos que começaram no início da pandemia ainda não geraram patentes “, diz “Podem ter sido feitos os pedidos, mas ainda não foram concedidos porque a concessão de patentes na Europa demora em média 18 meses”.
O advogado da área da propriedade industrial acrescenta que “as licenças compulsórias, em caso de emergência de saúde pública, que são de facto um instrumento jurídico que pode ser usado, havendo fundamento para tal, tem uma dificuldade prática. “Uma licença obrigatória pode demorar anos a poder ser usada”, explica o especialista em propriedade industrial. Gonçalo Sampaio adverte que “depois de ter sido quebrada a patente, coloca-se a questão de quem terá capacidade para a produzir a vacina. Porque estão em causa processos produtivos de alta complexidade e rigor”, diz,” para os quais só as farmacêuticas que produzem atualmente as vacinas estão preparadas”.
Miguel Prata Roque, professor de Direito Constitucional, está mais próximo da posição do Bloco de Esquerda. Embora critique a Comissão Europeia por não ter acautelado devidamente os contratos que assinou com as farmacêuticas, defende que se a indústria não consegue cumprir as encomendas, tem de partilhar a tecnologia, porque há milhões de vidas que é preciso salvar. O ex-assessor de Tribunal Constitucional lembra que” as patentes protegem invenções. Mas a verdade é que a larguíssima maioria dos medicamentos e das vacinas produzidos e comercializados pelas grandes farmacêuticas nem sequer foram inventados por elas. Cita um estudo que dá conta de que “no caso da Pfizer, apenas 23% dos medicamentos que produz e comercializa saíram dos seus laboratórios de investigação científica e no caso da Johnson & Johnson a percentagem é ainda menor, apenas 11%”.
O antigo secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros conclui que “na maior parte dos casos, quem procede à investigação científica não são os laboratórios das grandes farmacêuticas, mas centros de investigação universitários e centros de investigação ligados a organismos públicos.”
Recorde-se que a patente é a atribuição de um direito exclusivo (monopólio) pelo Estado, onde apenas o seu titular pode produzir e comercializar a invenção, durante um período que, no caso dos medicamentos, pode chegar aos 25 anos.
Em regra, os produtos farmacêuticos protegidos por patente são vendidos a um custo mais alto do que o da sua produção, como forma de compensação pelo investimento feito em investigação e inovação.