Maro, a jovem representante de Portugal na Eurovisão, representa uma geração que é a perfeita negação de Putin e dos filhos de Putin espalhados pela Europa. Esta jovem cantora não tem mais do que 25 anos, portanto, ela só conhece a abertura da globalização. Não se lembra dos blocos da Guerra Fria, nem sequer se lembra dos velhos nacionalismos. É uma filha do ocidente aberto, da mistura da geração erasmus. E esta mistura está presente até na forma como canta.
Maro é portuguesa, mas vive ou viveu na América, pensa, fala e canta em português mas também em inglês, o que acaba por lhe dar um sotaque na maneira como canta em português. Percebe-se que é alguém de fora. Se tivesse ouvido o "saudade, saudade" no vazio, eu teria dito que esta era a voz de uma filha de emigrantes portugueses no Canadá. Sim, Inês Lopes Gonçalves, a apresentadora do festival, tem razão: a forma como Maro diz “saudade” tem um lado crioulo no sentido mais genuíno do termo: mistura, ser de dois sítios ao mesmo tempo, nascer aqui mas também ser de acolá. A palavra ‘crioulo’ não indicava um mulato na pele, mas sim um mulato na cabeça; os crioulos eram europeus que nasciam nas Américas. Aqui no site da Renascença podem encontrar vídeos que mostram Maro a falar com sotaque e expressões brasileiras. Porque trabalha muito com músicos brasileiros? Porque nos EUA, onde vive ou viveu, o idioma português acaba por ser o brasileiro? Não sei, nem interessa. O que impressiona é a facilidade com que Maro faz a fusão entre várias culturas lusófonas e o inglês.
Pois bem, é precisamente esta mistura que irrita Putin e todos os outros nacionalistas que defendem a ideia de pureza e do consequente fechamento em relação a outros povos e culturas. Repare-se que Putin está a fazer uma guerra contra a Ucrânia para impedir a ‘contaminação’ dos povos russos pelo inglês e pela cultura ocidental. É disso que se trata. Na cabeça de Putin, Kiev, a primeira cidade do mundo russo, não pode ser europeia, ocidental, não pode ser aberta e cosmopolita, só pode ser eslava e russa. Repare-se ainda que Putin não está sozinho nesta obsessão. Ao longo dos anos, na velha extrema-esquerda e na nova extrema-direita, Putin foi alimentando aliados na Europa. Nestas cabeças nacionalistas, alguém tão crioulo como Mara não faz sentido, é até uma blasfémia que deve ser censurada. Na mente psicótica e conspirativa do nacionalismo, nada é belo e artístico, tudo é político, tudo é uma ameaça política existencial, até uma jovem que canta uma canção com dois idiomas e três ou quatro sotaques diferentes.
Desde os campos de batalha da Ucrânia até aos palcos da Eurovisão, nós estamos de facto a lutar pela defesa de um modo de vida aberto e cosmopolita contra o regresso das forças da ‘pureza’ que veem ‘impureza’ na mistura crioula representada pela nossa Maro.