Dezenas de pessoas conversam no adro da igreja de Santa Isabel, Campo de Ourique, ao final da tarde de uma terça-feira de calor em Lisboa.
As portas do templo estão abertas e no seu interior, frescura, fiéis de pé, com máquinas fotográficas, telemóveis ou tablets em riste apontam as objectivas para cima.
Todas as atenções estão voltadas para o tecto da igreja fundada em 1742, que acaba ser inaugurado.
São 900 metros quadrados de um céu translúcido em tons azulados e amarelos, que convida à reflexão sobre a ligação entre o mundo terreno e o divino, entre o homem e Deus.
Na estrutura, não existem anjos, pombas ou imagens sagradas, apenas uma pintura heterógenea, que faz percorrer o olhar de uma ponta à outra. Faltam 15 minutos para a celebração eucarística, momento de ação de graças pela conclusão das obras. Mas enquanto espera, o prior José Manuel Pereira de Almeida, pároco da Igreja de Santa Isabel, conta com entusiasmo a “atribulada, mas feliz história” do restauro do tecto.
Tudo começou em 2009 quando o arquitecto João Appleton anuiu à vontade do padre de restaurar o edifício sagrado, incluindo a cobertura do tecto. Para isso, o prior contactou Nuno Proença, um conservador especialista em restauros, convite que Nuno estendeu à sua irmã, a galerista Vera Appleton.
Os dois irmãos não hesitaram em abraçar o desafio do restauro. Entretanto, o padre de Santa Isabel foi ver uma exposição de Michael Biberstein e apaixonou-se pelos quadros.
“Assim que vi as telas, senti que ele seria a pessoa certa para dar cor ao tecto pintado de cinzento chumbo, desde a última intervenção nos anos 60”, afirma o padre José Manuel Pereira de Almeida, enquanto aponta para cima.
O pároco explica que, no século XVIII, a doutrina ditava que a assembleia deveria ser o centro, daí que os tectos fossem escuros e sem imagens, de forma a não distraiar os crentes da mensagem da liturgia.
O projecto “Um Céu para Santa Isabel” foi apresentado na Trienal de Arquitectura, em 2010, seguindo-se a realização de uma maqueta tridimensional, da autoria do artista Michael Biberstein.
Mas o convite formal do prior a Mike, como é conhecido Biberstein no mundo artístico, só foi feito em 2013, ano em que o pintor suíço morreu subitamente, vítima de um AVC, na sua herdade perto do Alandroal, no Alentejo. Era aí que residia com a sua esposa, a escritora e romancista portuguesa Ana Nobre de Gusmão há três décadas.
“Quando recebi a notícia, pensei mesmo que isto ia tudo por “água-abaixo”, sem a ajuda dele”. Com a maqueta a três dimensões de “Um Céu de Mike” ainda numa fase embrionária e sem financiamento para a totalidade das obras, o sonho de uma igreja renovada revelava-se cada vez mais longíquo.
É assim que unidos pela fé, paixão pelas artes e conservação do património religioso se cria um comité artístico composto por Ana Nobre de Gusmão (esposa de Mike), o próprio pároco José Manuel Pereira de Almeida, o Atelier Appleton e Domingos Arquitectos, o Appleton Square, a Nova Conservação, o Gabinete de Engenharia A2P, Delfim Sardo, Julião Sarmento e Cristina Guerra, com o propósito de terminar a obra “Um Céu para Santa Isabel” em apenas sete meses.
O financiamento do novo tecto da igreja paroquial chegou da parte da Santa Casa da Misericórdia (SCML), que contribuiu com 222 mil euros. “É sempre interessante ligar a arte e religião e valorizar o património cultural e religioso da cidade de Lisboa, como a Santa Casa tem vindo a fazer”, explicou o provedor Santana Lopes, antes de entrar na igreja.
Minutos depois, começou a eucaristia para uma assembleia composta por centenas de pessoas. O cardeal patriarca de Lisboa saudou os presentes e todos os que colaboraram directa ou indirectamente na concretização das obras.
Durante os cânticos entoados por um numeroso coro, acompanhado por uma pianista e um flautista, várias vezes D. Manuel Clemente olhou para o “céu” e contemplou o resultado final da obra.
Seguiu-se a homilia, na qual o cardeal patriarca de Lisboa destacou a importância do céu na tradição cristã: “Todos desejamos chegar ao céu e foi Jesus que o abriu, com a Ascensão, que representa o triunfo da vida plena e a destruição da morte”. Por essa razão, este “é um céu aberto a todos, como a vida eterna e o amor de Deus”.
No fim da cerimónia, questionado pela Renascença sobre a possível reacção do autor já falecido, D. Manuel Clemente foi claro. “Ele está lá em cima no céu. Certamente estará muito feliz e é muito mais conhecedor da obra, que todos nós aqui presentes”.