O major-general Raul Cunha, actual juiz militar que chegou a comandar a base militar de Tancos, acredita que a principal responsabilidade pelo furto de armas naquele local é dos políticos.
Militar em seis missões internacionais das Forças Armadas portuguesas, Raul Cunha comandou a base numa altura em que o sistema de videovigilância ainda funcionava e explica, em entrevista à Renascença, que estavam previstas melhorias de segurança, mas que a prioridade não foi dada aos paióis, uma vez que se partia do princípio que elas já tinham um mínimo de segurança garantida. “Pelos vistos não foi assim.”
Este furto pode estar relacionado com o terrorismo?
Penso que sim. Mais a mais sabendo agora que uma série de explosivos foram roubados e que têm determinadas características que são de maior intensidade. O facto de o material que foi roubado ser especificamente aquele e terem ido directos aos paióis que tinham esse material num universo de 20 paióis, significa que isto foi encomendado e que sabiam ao que iam. Ao levarem esses explosivos – as armas anticarro, os lança-foguetes e as granadas de mão – faz-me continuar a pensar que foi uma encomenda e uma encomenda de pessoal ligada ao terrorismo.
Pensa que houve colaboração interna?
Alguma colaboração terão tido porque sabiam onde estava o material e ao que iam. E não é fácil saber isso. Agora como foi possível algo deste género, não faço ideia. Mas tudo aponta nesse sentido.
Mas não se sabe quem é que foi responsável por este assalto?
Não. Alguém que sabia onde estava e como lá entrar e também daí a questão de poder ser um problema de nível interno. É uma opinião pessoal. Mas é muito difícil assacar responsabilidade ao comandante do Exército quando – conheço bem a pessoa – tenho a certeza que tudo tem feito para colmatar estas deficiências que existem e que simplesmente as prioridades têm de ser definidas. Infelizmente, a coisa correu mal.
Se os militares a fazer a ronda tivessem detectado o furto o que é que lhes poderia ter acontecido?
Face ao volume de pessoal que está de serviço, e que não é muito, no caso de estes indivíduos estarem decididos a levar este material teríamos tido um problema muito maior. Os militares que fazem esta segurança têm pouca capacidade para se defenderem. Têm a sua arma e pouco mais. E no caso de surpreenderem pessoas destas, pessoas decididas a fazer mal, se calhar tínhamos tido um problema ainda maior.
E pior: se morria algum dos assaltantes, no dia seguinte, os militares estavam crucificados à mesma porque tinham morto um coitadinho que só estava a fazer turismo e queria ir ver o que havia ali. Infelizmente, nem sequer os militares que fazem essa guarda têm a garantia, no caso de terem de intervir, que a seguir, em termos de justiça e de opinião pública não sejam crucificados.
Defende que a segurança devia ser maior?
O Exército tem feito um esforço grande nesse sentido. Um pouco antes de ter tomado posse no tribunal, estive na Inspecção-Geral do Exército e, por indicação do general-chefe, fiz a revisão de todos os depósitos e arrecadações de armamento do país. Foi feito um esforço muito grande para que todas as arrecadações tivessem um nível de segurança adequado. Mas o pano é curto e não dá para tudo.
As prioridades estavam definidas e nunca se pensou que chegasse ao ponto de assaltarem os paióis nacionais, que até têm uma guarda, e onde se sabia que o sistema de videovigilância estava em baixo e havia intenção de os substituir. Esta prioridade ficou para o fim.
E os comandantes das unidades que foram exonerados, têm responsabilidade?
Eles foram afastados temporariamente, é a figura que existe. Se fossem exonerados já não podiam voltar ao cargo. Foi mais para dar a ideia de que não há interferência na investigação e penso que isso está garantido. Mas os comandantes apenas têm como responsabilidade a nomeação do pessoal que vai fazer essas guardas e isso passa pelos soldados que têm disponíveis.
Não sei até que ponto se pode assacar a esses comandantes alguma responsabilidade. Para mim, a maior responsabilidade é do poder político, que tem feito um grande desinvestimento nas Forças Armadas. Nas reorganizações têm-se sempre reduzido efectivos e diminuído os custos com pessoal, as verbas em funcionamento… E isto tem os seus reflexos.
Alguns militares dizem que quem se devia demitir era o ministro da Defesa e o chefe do Estado Maior do Exército. A culpa também não é dele?
Acho que não. A responsabilidade está ao nível político. Ao nível militar é muito difícil determinar a responsabilidade. A ser, será de quem não deu a prioridade à correcção do sistema de videovigilância e isto até se terá passado ao nível de quem faz estes estudos e não dos comandantes das unidades.
Há cinco unidades que nomeiam pessoal para fazer as guardas, mas a grande responsabilidade por esses paióis é do Regimento de Engenharia. E o Regimento de Engenharia também tem as suas limitações. Em tempos já afastados, tinha uma subunidade para garantir a segurança desses paióis. Dado a falta de pessoal é que começou a haver essa rotação entre unidades, que passaram a nomear as guardas para aquela instalação. De maneira que logo aí se vê que é a falta de meios que leva a que estas situações apareçam.
Foi comandante da Brigada de Reacção Rápida naquele local...
Precisamente. E tinha sob o meu comando unidades que dava a guarda àquela instalação, portanto estou bastante a par do problema em si. Só que na altura, talvez felizmente, o sistema de videovigilância estava funcional ainda. Saí de lá em 2001.
Nessa altura ainda não era rotativa a segurança?
Já era rotativo. Começou nessa altura porque já não havia pessoal suficiente na Escola Prática de Engenharia.
E nessa altura considerava suficiente a segurança ao local?
Tínhamos videovigilância, que ajudava muito. Praticamente todos os paióis tinham uma câmara apontada e havia um comando central na casa da guarda que permitia observar praticamente toda a instalação. Primeiro, começaram a avariar alguns dos monitores, depois algumas das câmaras e, ultimamente, o sistema estava totalmente inoperacional, e estava previsto ser substituído.
Em 2014 fiz uma inspecção a esse local e ainda funcionava com algumas limitações, mas funcionava. Aí, provavelmente como ainda funcionava não lhe foi dada uma grande prioridade.
É grave do ponto de vista internacional, nomeadamente ao nível da NATO. Como é que é vista esta situação? A credibilidade é afectada?
Penso que não. Temos uma credibilidade ao nível da NATO que se calhar outros países até mais fortes, em termos de força, em termos de unidades, não têm. Temos uma credibilidade ao nível técnico e ao nível de competência que dificilmente será afectada. E mais, este facto não aconteceu só em Portugal, aconteceu ainda há três meses noutro país da NATO. Não somos os únicos.
Isto está sempre a acontecer porque eles têm de ir buscar as armas a algum lado.
Mas para os portugueses esta é uma situação grave. Pergunta-se como é que isto acontece, até porque não é a primeira vez. Nunca apareceram as armas que desapareceram na Carregueira?
Só apareceu uma delas, ligada a um assalto qualquer, acho eu. Não, nunca apareceram. Provavelmente essas também foram por encomenda. Eu era comandante da brigada na altura, quando isso aconteceu. Aconteceu o desaparecimento das armas numa arrecadação que, inclusivamente, tinha um código de acesso que era difícil de quebrar. E, no entanto, mesmo assim desapareceram.
Em que é que ficou essa investigação?
A partir daí além do código de acesso aos depósitos de armamentos, centralizou-se o depósito de armamento no regimento e neste momento está completamente coberto por videovigilância, de maneira que é praticamente impossível aceder às arrecadações do regimento de comandos sem ser detectado.
Quantos locais como este existem no país?
Além dos paióis de Tancos existe Santa Margarida, mas praticamente em todas as unidades existe um pequeno paiolim onde é guardado algum material para consumo imediato, na instrução.
Como é que classifica a segurança no geral destas unidades militares?
Neste momento acho que a segurança é muito boa porque, como lhe digo, foi feito um grande esforço para colmatar as deficiências que existiam. Foi feito um estudo, foi definida uma arrecadação-tipo com todas as seguranças e essa alteração ao nível geral do Exército começou imediatamente a ser feita na altura, só que ainda não chegou ao fim. Não tinha chegado ainda aos paióis, foi considerado que estavam mais ou menos protegidos e que portanto havia alguma garantia. Pelos vistos não foi assim.