“Respeitar a separação de poderes é, sem temer ou sequer hesitar, aplicar a lei a todos.” Com esta frase, o novo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal definiu o que quer do Ministério Público (MP) nesta fase: procuradores sem receio das investigações.
No discurso de tomada de posse, que decorreu num pequeno auditório na sede da Procuradoria-Geral da República, em Lisboa, Rui Cardoso assumiu que aos procuradores não lhes cabe “fazer a lei, apenas aplicá-la” a todos e “também aos que as aprovam, também aos que a aplicam”.
Aplicar a lei “não é violar a lei, deixando de a aplicar àqueles que, de forma mais assumida ou mais dissimulada, querem controlar a Justiça para continuar acima dela”, continuou Rui Cardoso, que neste lote incluiu ainda aqueles que “não gostam que a Justiça recuse ser instrumental e submissa à política, à economia, à finança” e aqueles que “julgam que o voto popular tudo legitima e tudo amnistia”.
O novo responsável do DCIAP diz que no trabalho dos procuradores “não deve haver qualquer temerária coragem, mas antes convicção” e que esta “não se trata de [uma] missão, mas de obrigação”, imposta pela Constituição.
Com um MP debaixo dos holofotes, na sequência do polémico mandato da anterior Procuradora-geral da República, Lucília Gago, o novo diretor do DCIAP vem dizer que a ação dos procuradores “não é justicialismo, é só Justiça”.
No fundo, Rui Cardoso desenha o perfil de base do MP e que está plasmado na lei e na Constituição: os procuradores não andam cá para agradar ao poder político, financeiro ou outro e “não se sentem menos legitimados por não terem sido eleitos”.
“Porque não depende do voto, de ter de agradar a maiorias impotentes ou minorias poderosas, que os procuradores podem e devem sempre respeitar a Constituição e a Lei”, resume Rui Cardoso.
Aos procuradores, o novo responsável do DCIAP avisa que “a sua legitimidade vem também da forma como a cada momento exercem as suas funções, como isso gera ou não gera confiança em todos e cada um dos cidadãos”.
Comunicar “melhor, de forma atempada e clara
Com um MP escaldado pelas acusações que durante o mandato de Lucília Gago foram feitas de má comunicação e má gestão dos processos perante o público, Cardoso vem pedir que se faça simples e transparente.
“Temos sempre de fazer melhor, mas também de comunicar melhor: de forma atempada e clara. Não devemos ser escravos das perceções públicas, mas não as podemos ignorar. Quem não conhece e não compreende não pode confiar. E nós devemos querer que em nós confiem. E para isso é importante que conheçam o que fazemos, como faze[1]mos e porque fazemos”, pediu Rui Cardoso.
Rui Cardoso promete ainda “tratar cada processo como se fosse o único, cada pessoa como se fosse a mais importante” e cada decisão é “ponderada, que é aquela que julgamos a correta”, com o novo diretor do DCIAP a assumir que “também podemos errar” e que “há que ter coragem para assumir que um procurador é tão humano como qualquer outra pessoa, que pode falhar como qualquer outra. Pode, mas não deve e por isso tudo deve ser feito para o evitar”.
A responsabilidade do DCIAP só quando o “trabalho seja efetivamente seu”
A separação de poderes resulta também na responsabilidade dos atos praticados por cada órgão de soberania ou órgãos do Estado. E o DCIAP “nunca temerá prestar contas pelo resultado do seu trabalho, desde que o trabalho seja efetivamente seu”, diz Rui Cardoso.
O DCIAP não poderá, por isso, ser “responsabilizado pelo que não domina, pelo que na verdade está no controlo de outros: outros órgãos do Estado, outros Estado”, diz Rui Cardoso.
Sem nunca falar de casos concretos, Rui Cardoso afirma que “o MP nunca perde, nem ganha”, mas “há Justiça que se faz ou que fica por fazer” e garante que os procuradores não gostam do “injusto”, assumindo um “compromisso total com a Justiça”, confiando que esse é o desígnio “de todos os que integram o DCIAP”.
A boa utilização da Inteligência Artificial
O discurso de tomada de posse de Rui Cardoso também passou pelos meios e recursos à disposição do MP. E pede que se vulgarize e aproveite o que a Inteligência Artificial permite ao setor da Justiça.
“Em tempos de vulgarização da utilização da inteligência artificial, facilmente acessível a qualquer pessoa, não podem os magistrados e oficiais de justiça continuar amarrados a programas obsoletos, que não estão ao seu serviço, antes exigem o seu esforço, desnecessário e muitas vezes estéril”, resume Rui Cardoso. É, por isso, diz, “tempo de mudar, há muitos anos que é tempo de mudar”.
PGR pede celeridade na Justiça
À tomada de posse de Rui Cardoso seguiu-se de imediato o discurso do Procurador-geral da República (PGR) que carregou na tecla da necessidade de rapidez a despachar os inquéritos judiciais. Amadeu Guerra aproveitou mesmo para desafiar o responsável máximo do MP.
"Sendo a falta de celeridade um dos problemas da Justiça, em particular neste departamento, pelas razões que todos conhecemos, aqui fica um repto ao diretor hoje empossado", começou por dizer Amadeu Guerra, que espera que o MP consiga "diminuir as pendências e produzir despachos finais nos inquéritos, em prazo cada vez mais reduzido".
Amadeu Guerra terminou esta ideia dizendo que "uma justiça prestigiada e respeitada pelos cidadãos é aquela que conseguimos fazer num tempo razoável e aceitável, ou seja, no mais curto espaço possível.
O PGR aproveitou ainda para elogiar Rui Cardoso pela "capacidade de comunicação" que "representa uma mais-valia, num período em que pretendemos estar mais perto dos cidadãos e prestar contas do trabalho desenvolvido pelo Ministério Público", claramente cavando um fosso entre a nova liderança do MP e a anterior gestão de Lucília Gago, tantas vezes acusada de opacidade.
Aos seus magistrados, o PGR pediu ainda que abandonem a "linguagem hermética e rebuscada" que tantas vezes usam, defendendo que as suas decisões judiciais devem poder ser compreendidas por toda a gente.
Com a tomada de posse de Rui Cardoso terminaram as funções de Francisco Narciso, que colocou o lugar à disposição mal Amadeu Guerra foi nomeado para o cargo de PGR e o sucessor de Lucília Gago agradeceu-lhe a "coragem" pela atitude "o que demonstra que estava ciente de que, com este gesto simples, pretendia facilitar" a opção em torno do nome do novo diretor do DCIAP.
Por fim, nem Amadeu Guerra, nem Rui Cardoso falaram aos jornalistas quando terminou a tomada de posse.