Na terça-feira é lançado em todo o mundo o mais recente livro do Papa Francisco, "O Nome de Deus é Misericórdia", resultante de uma longa entrevista com o jornalista Andrea Tornielli.
Ao longo de vários capítulos, Francisco analisa o conceito de misericórdia, tema central do seu pontificado e a que recentemente decidiu dedicar um jubileu extraordinário, que começou a 8 de Dezembro, prolongando-se até Novembro deste ano.
No livro, do qual a Renascença publica aqui alguns excertos, Francisco escreve que o sentimento de vergonha diante da misericórdia de Deus é uma graça, compara os conceitos de pecado e de corrupção, dizendo que não são sinónimos, e confessa que quando está diante de reclusos sente que ele próprio também merecia estar preso.
Pode ler aqui alguns excertos do livro, que é lançado mundialmente na terça-feira, em simultâneo em 86 países. Em Portugal, a edição está a cargo da Planeta.
A vergonha é uma graça
“Posso ler a minha vida através do capítulo 16 do livro do profeta Ezequiel. Leio aquelas páginas e digo: mas tudo isto parece escrito por mim. O profeta fala da vergonha, e a vergonha é uma graça: quando alguém sente a misericórdia de Deus, tem uma grande vergonha de si próprio, do seu pecado.
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Aquele texto de Ezequiel ensina a sentires-te envergonhado, faz que te possas envergonhar: com toda a tua história de miséria e de pecado, Deus permanece fiel a ti e ajuda-te a levantar. Sinto isso.
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Penso no padre Carlos Duarte Ibarra, o confessor que encontrei na minha paróquia a 21 de Setembro de 1953, no dia em que a Igreja celebra o São Mateus apóstolo e evangelista. Tinha dezassete anos. Senti-me recebido pela misericórdia de Deus quando me confessei com ele. (…) Morreu no ano seguinte. Ainda me lembro que depois do seu funeral, quando regressava a casa, me senti como se tivesse sido abandonado. E chorei muito naquela noite no meu quarto. Porquê? Porque perdera uma pessoa que me fazia sentir a misericórdia de Deus.”
- do capítulo I
Merecia estar preso
O Papa é um homem que precisa da misericórdia de Deus. Disse-o sinceramente, inclusive perante os prisioneiros de Palmasola, na Bolívia, perante aqueles homens e aquelas mulheres que me receberam com tanto afecto. Relembrei-os de que também São Pedro e São Paulo estiveram presos. Tenho um especial carinho pelos que vivem na prisão, privados da liberdade. Fiquei muito ligado a eles, por esta consciência do meu ser pecador. De cada vez que entro numa prisão para celebrar uma missa ou para uma visita, tenho sempre este pensamento: porquê eles e não eu? Devia estar aqui, merecia estar aqui. A sua queda poderia ser a minha, não me sinto melhor do que os que tenho perante mim. Por isso repito e rezo: porquê ele e não eu? Poderá impressionar, mas consolo-me com Pedro: renegara Jesus e apesar disso foi escolhido.
- do capítulo IV
A Igreja como hospital de campanha
Porque existe o pecado no mundo, porque a nossa natureza humana está ferida pelo pecado original, Deus que nos doou o seu Filho, só se pode revelar como misericórdia.
Deus é um pai zeloso, atento, pronto para acolher qualquer pessoa que dê um passo ou que tenha o desejo de dar um passo na direcção de casa. Ele está ali a observar o horizonte, espera-nos, está já à nossa espera. Nenhum pecado humano por muito grave que seja pode prevalecer sobre a misericórdia ou limitá-la.
Acompanhando o Senhor, a Igreja é chamada a transmitir a sua misericórdia a todos os que se reconhecem pecadores, responsáveis pelo mal praticado, que se sentem necessitados de perdão. A Igreja não está no mundo para condenar, mas para permitir o encontro com aquele amor visceral que é a misericórdia de Deus. Para que isso aconteça, repito-o muitas vezes, é necessário sair. Sair das igrejas e das paróquias, sair e ir procurar as pessoas onde elas vivem, sofrem, esperam. O hospital de campanha, a imagem com a qual gosto de descrever esta situação “Igreja em saída”, tem a característica de estar onde se combate: não é a estrutura sólida, dotada de tudo, onde se vai curar as pequenas e grandes doenças. É uma estrutura móvel, de primeiros socorros, de intervenção imediata, para evitar que os combatentes morram. Pratica-se a medicina de urgência, não se fazem check-up especializados. Espero que o Jubileu Extraordinário faça emergir cada vez mais o rosto de uma Igreja que redescobre as entranhas maternas da misericórdia e que vai ao encontro de muitos “feridos” necessitados de compreensão, perdão, amor e de serem ouvidos.
- do capítulo V
Pecado v. Corrupção
A corrupção é o pecado que em vez de ser reconhecido como tal e de nos tornar humildes, se tornou sistema, torna-se um hábito mental, uma forma de vida. Não sentimos necessidade de perdão e de misericórdia, mas justificamo-nos e aos nossos comportamentos. (…) O pecador arrependido, que depois cai e recai no pecado por motivo da sua fraqueza, encontra novamente perdão quando reconhece que necessita de misericórdia. O corrupto, por sua vez, é aquele que peca e não se arrepende, aquele que peca e finge ser cristão, e com a sua dupla vida provoca escândalo.
(…)
Embora muitas vezes se identifique a corrupção com o pecado, na realidade trata-se de duas realidades diferentes, apesar de interligadas. O pecado, sobretudo se reiterado, pode levar à corrupção, mas não quantitativamente – no sentido que um determinado número de pecados não fazem um corrupto –, quando muito qualitativamente: criam-se hábitos que limitam a capacidade de amar e levam à auto-suficiência. O corrupto cansa-se de pedir perdão e acaba por acreditar que não deve pedir mais. (…) Uma pessoa pode ser uma grande pecadora e no entanto pode não ter caído na corrupção. Aludindo ao Evangelho, penso no exemplo das figuras de Zaqueu, de São Mateus, da samaritana, de Nicodemo, do bom ladrão: nos seus corações pecadores todos tinham alguma coisa que os salvava da corrupção. Estavam abertos ao perdão, o seu coração pressentia a sua fraqueza, e isto foi a abertura que permitiu entrar a força de Deus. O pecador, ao reconhecer-se como tal, de alguma forma admite que aquilo a que aderiu, ou adere, é falso. Por sua vez, o corrupto esconde aquilo que considera o seu verdadeiro tesouro, aquilo que o torna escravo, e disfarça o seu vício com a boa educação, arranjando sempre uma forma de salvar as aparências.
- do capítulo VII