Elizardo Sánchez. "O governo cubano odeia-nos a todos"
21-03-2016 - 07:00
 • José Bastos

O dissidente histórico fala à Renascença, a horas de se reunir com Obama. "Fidel e Raúl são o obstáculo às reformas", diz Sánchez.

Elizardo Sánchez Santa Cruz, 71 anos, o mais destacado opositor interno cubano, vai encontrar-se com Barack Obama, em Havana. Como fundador e presidente da Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CCDHRN), o "Vaclav Havel cubano" é o veterano do grupo de dissidentes recebido pelo Presidente norte-americano na embaixada dos Estados Unidos, na capital de Cuba.

Depois de "48 anos lutando contra a ditadura", oito dos quais como prisioneiro político nas cárceres dos irmãos Castro, Sánchez olha com esperança para a etapa que se abre. Mas a sua vontade contrasta com a realidade do horizonte imediato por si desenhado.

No pós-Obama, em Havana, "não vai haver lugar a mudanças espectaculares na sociedade cubana", diz. "Os regimes democráticos têm de agir lentamente tentando ganhar espaço" junto da ditadura, "não deixando de confiar também que o passar do tempo ajude em todo o processo", afirma à Renascença, sem deixar de lembrar Salazar.

Considerado "a referência" da situação dos direitos humanos em Cuba para a ONU, Amnistia Internacional ou Human Rights Watch, o antigo professor de Filosofia da Universidade de Havana nunca abandonou Cuba por um lugar bem mais confortável no exílio. Acusa o governo cubano de "adoptar uma posição norte-coreana", não aceitando sugestões vindas do exterior.

Cinquenta e oito anos depois da tomada do poder pela dinastia Castro, "há muita miséria e pobreza, culpa da ditadura que arruinou o país", mas apesar da falta de "todo o tipo de coisas materiais", Elizardo Sánchez Santa Cruz diz ser a "esperança" o bem mais escasso da sociedade cubana.

Se Barack Obama conseguir despertar essa esperança, então está "justificada" a visita à maior ilha das Caraíbas, defende o "Vaclav Hável cubano", assim considerado pelas semelhanças com o arquitecto da transição em Praga, último Presidente da Checoslováquia e primeiro presidente da República Checa.


Os sectores mais radicais da oposição ao regime acusam Obama de falar com Raúl Castro sem exigir democracia em troca, confiando em que uma sociedade informada acabará por o fazer. Como lê a crítica?

Em Cuba as reformas acabarão por acontecer. Temos de levar em linha de conta que o governo da família Castro já entrou no seu ano 58. É o governo mais antigo do planeta. Governa mal. Arruinou o país. Levou-nos a uma situação muito desfavorável em matéria de direitos fundamentais. Daí, o prognóstico de que, a médio e longo prazo, a normalização das relações, a visita de Obama, vai ter influência no que necessariamente acabará por ter lugar.

A Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CCDHRN) está a apoiar todo o processo de aproximação com os Estados Unidos em direcção à normalização total de relações, mas é uma dinâmica que irá demorar o seu tempo. O governo de Cuba não quer proceder a mudanças de fundo, a reformas.

Mas a oposição divide-se quanto ao ritmo e cadência da pressão para se chegar à democracia...

É verdade. A divergência também resulta ser normal no seio de projectos democráticos como são todos os nossos aqui na dissidência em Cuba. Mas posso garantir que a maioria vê com bons olhos o restabelecimento de relações e a visita do Presidente Obama. Sem qualquer tipo de dúvida.

Obama vai manter reuniões com líderes da oposição interna. Encontros à porta fechada sem alarido. Vai participar?

Sim. Um encontro do Presidente Obama com representantes da sociedade civil independente vai ter lugar na terça-feira, às 10h00, hora de Cuba. Julgo que há convites à imprensa. Um encontro com um dignitário estrangeiro não pode ser feito na praça pública. Terá de ter lugar na embaixada dos Estados Unidos ou numa residência diplomática ou outro lugar onde possamos estar sentados a trocar opiniões.

Mas confirma a sua presença?

Sim. Estou convidado.

Como reage à acusação de que a lista de dissidentes no encontro com Obama é “tolerada” pelo regime?

É algo que não é verdade. É totalmente inexacto. Não quero empregar uma palavra mais forte. O governo cubano odeia-nos a todos. O governo cubano persegue-nos. A todos os que vão ao encontro com Obama e a muitos mais.

Qual foi o critério para o convite dos Estados Unidos? Grau de representatividade da dissidência?

O movimento da dissidência interna cresceu muito. Há 20 ou 25 anos, éramos menos de dez a actuar directamente nas ruas. Agora, há milhares que não negam a sua condição de opositores, sem contar uma quantidade incalculável de pessoas que apoiam e simpatizam com os esforços para que em Cuba se possa viver melhor.

Estarei no encontro com o Presidente Obama, convidado pela embaixada dos Estados Unidos. Naturalmente, o grupo não pode ser de meia centena. Não haveria espaço numa sala de reuniões. Creio que seremos entre dez e 12 dissidentes. Estaremos ali não como representantes da sociedade civil independente, mas sim de algumas organizações da nossa sociedade civil.

Raúl Castro não comprometerá o êxito da viagem de Obama. O Presidente dos EUA podia, ainda assim, aspirar a mais?

Seguramente que Obama - tal como os governos democráticos da Europa e do mundo - desejaria que a vida melhorasse para a imensa maioria dos cubanos. Vivemos em Cuba um cenário muito desfavorável. Temos aqui a pior situação em todo o espaço ibero-americano em matéria de direitos civis e políticos e em outros direitos fundamentais.

O grande obstáculo continua a ser o governo de Cuba que se nega a fazer as reformas necessárias. Neste ponto, ainda que haja diferenças geográficas e de carácter o governo cubano adopta a atitude do governo norte-coreano. Ou seja, encerrar-se no seu próprio "bunker", atrincheirar-se e não aceitar sequer sugestões amistosas vindas do exterior.

Mas Obama não está a ceder demasiado em troca de coisa nenhuma?

Nos Estados Unidos, os opositores do Presidente Obama fazem essa crítica alegando que teve poucas cedências das autoridades de Cuba. Mas - e vocês já o experimentaram aí em Portugal, com Oliveira Salazar - lidar com uma ditadura é bem complicado. Então, os regimes democráticos têm de agir lentamente tentando ganhar espaço, não deixando de confiar também que o tempo - um factor que favorecerá as mudanças em Cuba - ajude em todo o processo.

A visita de Obama poderá afectar os interesses eleitorais de Hillary Clinton? Por exemplo, Marco Rubio – agora fora da corrida – apelava a Obama a não se deslocar a Havana...

Pode. A própria potencial candidata Hillary Clinton, há não muito tempo, disse que uma negociação bilateral implica concessões mútuas. Ela própria não estará satisfeita com os resultados alcançados até ao momento. Mas há que desdramatizar a visita de Obama a Cuba.

Em 1975, Nixon foi a Pequim e estendeu a mão a Mao Tsé-Tung, que foi um ditador que matou muita gente na China, incluindo aqueles que morreram de fome por culpa do regime totalitário maoísta.

Obama disse à CNN que irá falar de direitos humanos com Castro. Até aqui, o argumento de Havana é o de que não recebe lições de Washington enquanto Guantánamo estiver aberta. Guantánamo é uma mancha dos Estados Unidos, mas não directamente de Obama...

Não, não é uma mancha de Obama. Mas o governo já não alega o mesmo com as democracias europeias ou com os japoneses quanto tentam influir positivamente nesta questão. Aí diz tratar-se de um assunto interno de Cuba. Estas tácticas dos Castro não são nada de inédito. Já em 1936 Goebbels enfrentou as críticas aos abusos, entretanto cometidos pelo regime hitleriano, dizendo tratar-se de uma ingerência nos assuntos internos da Alemanha. Nada de novo, portanto.

Mas Obama, nesta visita, conseguirá justificar os seus deveres de activista da liberdade e democracia?

De imediato, só a garantia de que Obama poderá dirigir-se ao povo cubano pela rádio e televisão abre uma possibilidade muito significativa de que transmita uma mensagem de esperança, a exemplo do que aconteceu com o Papa João Paulo II. Em Cuba, há muita miséria e muita pobreza por culpa - na maioria dos casos - do regime totalitário que arruinou o país. Falta todo o tipo de coisas materiais, mas o que mais falta é a esperança. E se um dignitário estrangeiro - chame-se Obama ou tenha outro nome - transmite uma mensagem de esperança o acto, por si só, justificaria a deslocação à ilha.

Nesse sentido, como avalia o papel do Vaticano na aproximação aos Estados Unidos?

O Papa Francisco tem estado a apoiar este processo de restabelecimento de relações e a ulterior normalização das relações bilaterais, mas o Papa foi muito evasivo quanto à situação dos direitos fundamentais dos cubanos e reuniu-se com Fidel Castro, não sendo este um chefe de Estado. Julgo que Obama não se encontrará com Fidel, porque, entre outras razões, ele já não é chefe de Estado. Mas continua a mandar em Cuba.

Mas a verdade é que os Castro estavam confortáveis com o distanciamento aos Estados Unidos e o papel do Vaticano e de outros, ao aproximar Washington a Havana, desafia essa comodidade...

Sim, claro. Toda a ditadura e todo o ditador - autoritário ou totalitário - necessita de um inimigo externo para justificar o seu próprio fracasso. Quando não existe tem de ser inventado. Nas últimas décadas, com os erros das políticas de Washington, alimentou-se o argumento de que Cuba tinha um inimigo externo. Agora essa imagem está a desmoronar-se rapidamente porque já há relações diplomáticas.

Os Estados Unidos continuam a anunciar novas medidas para normalizar as relações, mas, atenção: o governo cubano tem grandes recursos. Havana dispõe de uma máquina de propaganda interna e externa e o controlo absoluto sobre o país. O governo cubano tem uma enorme capacidade de intimidação sobre o conjunto dos cidadãos e, seguramente, irá procurar novos pretextos e argumentos para manter viva a imagem do inimigo externo. Apesar de ser já um absurdo total.

Dado objectivo: pela primeira vez em 80 anos um Presidente norte-americano vai a Havana concretizar, simbolicamente, o que dez predecessores não conseguiram: normalizar relações com um vizinho incómodo. Em si mesmo, é um dado histórico...

Sem dúvida. É uma visita de grande relevância. Neste momento Obama é a figura de maior popularidade em Cuba. É o mais popular nas ruas de Cuba. O seu discurso vai ser seguido com interesse máximo. Como o povo cubano está muito desesperançado, qualquer mensagem positiva que receba desperta a ilusão dessa imensa maioria silenciosa de que falo.

Esse grau de conhecimento da sociedade cubana permite também afirmar que a vida não vai mudar quando o Air Force One sair de Havana...

Não. Não vai haver lugar a mudanças espectaculares na sociedade cubana. Isso foi reconhecido pelo próprio Presidente Obama e pela diplomacia norte-americana. O grande obstáculo às alterações está ainda de pé: é a resistência da família Castro a fazer reformas em Cuba. Até aqui, temos assistido a pequenas alterações administrativas de pouca monta. Alterações tardias e precárias, porque não são mudanças que estejam sustentadas em forma de lei. Por isso continuamos a exigir que se produzam reformas em Cuba amparadas na lei para que sejam irreversíveis. Até aqui, todas as alterações feitas são perfeitamente alteráveis.

Mas as reformas não são inevitáveis com o fim biológico da dinastia Castro?

Exactamente. O comandante Fidel Castro cumpre 90 anos dentro de poucos meses. O seu irmão Raúl Castro faz 86. São idades muito avançadas. Acontece que os dois constituem, pelo menos, o símbolo e a essência dos principais obstáculos a impedir a mudança. Fidel e Raúl são o principal obstáculo a que os cubanos tenham melhores condições de vida em direitos fundamentais, mas também de qualidade de vida e, sobretudo para os mais jovens, esperança para o futuro.