Portugal “tem de ter as suas instituições de fiscalização financeira preparadas para acompanhar, em tempo real”, a aplicação dos 15,3 mil milhões de euros que vai receber de Bruxelas, para recuperar o país da pandemia.
O alerta foi feito recentemente pelo Tribunal de Contas Europeu, diz Mouraz Lopes, juiz conselheiro na entidade que fiscaliza as contas públicas nacionais.
No programa Em Nome da Lei deste sábado, também António Ventinhas, o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, mostra preocupação relativamente à chamada “bazuca europeia”, porque “o que se retira das declarações que sobre a matéria têm sido feitas por responsáveis políticos vai no sentido de que a estratégia é aligeirar os controlos para que venha o máximo de dinheiro, o que é visível pelas alterações feitas no Código da Contratação Pública”.
O juiz do Tribunal de Contas Mouraz Lopes aconselha os responsáveis políticos a criarem uma "task force" à semelhança da que foi feita para a Expo-98, para que o país faça um acompanhamento rigoroso da aplicação “dos milhões que estão a chegar de Bruxelas, conforme foi pedido pelo tribunal europeu a todos os Estados-membros e está a ser recomendado também pelo Tribunal de Contas nacional".
Convidado pelo programa Em Nome da Lei para falar sobre o combate à corrupção, Mouraz Lopes afirmou que, “no âmbito preventivo não existe qualquer coordenação entre as entidades que intervêm na fiscalização das finanças públicas e no topo das quais está a Inspeção Geral das Finanças".
O antigo magistrado do Ministério Público, que dirigiu na Polícia Judiciária (PJ) o departamento de combate à corrupção e ao crime económico, diz que, ao nível dos organismos de fiscalização interna da aplicação de dinheiros públicos pela administração central e local, “nada tem funcionado na prática”.
Mouraz Lopes considera “especialmente grave” o défice de fiscalização ao nível das autarquias, “desde que em 2011 foi extinta a Inspeção Geral da Administração Local e cujas competências foram diluídas na Inspeção Geral das Finanças que tem outras prioridades”.
Essa falta de controlo é tanto mais preocupante quanto a maior parte dos processos de corrupção que estão ser julgados nos tribunais dizem respeito ao poder autárquico. Mouraz Lopes sublinha que “nem tudo é crime. Mas há muitas patologias financeiras ao nível das autarquias. Ao nível administrativo, temos tido alguns autarcas que perderam os mandatos por causa das irregularidades que cometeram. E portanto temos aqui um problema", afirma.
O juiz conselheiro, que acaba de editar um segundo livro sobre corrupção, ”O Labirinto do Minotauro”, diz que as autarquias são “uma área de risco de má utilização dos dinheiros públicos e é preciso encarar o problema de forma clara”. Essa é uma crítica que faz à Estratégia de Combate à Corrupção apresentada pelo Governo para os próximos 4 anos.
"Em nenhum lado essa estratégia fala da necessidade de um maior controlo financeiro e das patologias que envolvem as autarquias”, lamenta.
O juiz do Tribunal de Contas diz que, "em Portugal, não faltam exemplos de documentos muito bem feitos mas que não passam do papel e lembra que, “em 2017, o próprio Ministério Público aprovou uma estratégia de combate à corrupção muito bem feita. Mas desde então não foram apresentados quaisquer resultados”.
O mesmo lamenta o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que só consegue explicar a situação pela mudança operada no topo da hierarquia da Procuradoria-Geral da República, com a substituição de Joana Marques Vidal por Lucília Gago.
Quanto à Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, António Ventinhas também admite ter dúvidas de que saia do papel. O documento, com cerca de 80 páginas e com o qual o Governo quer dar “coordenação, coerência e consistência à prevenção e repressão da corrupção”, tem um problema: "não fala de dinheiro".
António Ventinhas revela ainda que “já perguntou várias vezes e ainda não obteve resposta quanto aos milhões alocados à estratégia.”
O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público lembra o que sucedeu com os estabelecimentos prisionais. "O plano de restruturação do sistema prisional português foi elaborado há 15-20 anos por Freitas do Amaral e até hoje nunca foi cumprido”, diz António Ventinhas, receando que o mesmo destino acabe por ter a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, cuja fase de consulta pública terminou esta semana .
Outro dos participantes no debate, Nuno Cunha Rolo, lembra que a “corrupção é a preocupação número um dos cidadãos dos países membros da OCDE”. O vice-presidente da Associação Transparência e Integridade sublinha que os portugueses “têm uma perceção altíssima do problema da corrupção no país".
"É preciso perceber de onde vem essa perceção e atacar as suas origens", defende, considerando que” um dos problemas tem a ver com a falta de celeridade da Justiça, que gera uma sensação de impunidade e uma desconfiança dos cidadãos na democracia, alimentado extremismos e populismos”.
São declarações ao programa de Em Nome da Lei, transmitido pela Renascença os sábados ao meio-dia e, em reposição, à meia-noite.