“Quando as pessoas dizem 'eu preferia morrer', fazem-no porque estão num sofrimento muito grande”. As palavras são da enfermeira Margarida Alvarenga, da unidade de cuidados paliativos do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto e a explicação é repetida à reportagem da Renascença por diferentes profissionais da unidade
A vontade de viver até que a natureza o permita vence, em muitos casos, aos primeiros sinais de alívio: “Quando as pessoas estão num sofrimento grande, como dores ou falta de ar, é difícil viver assim. Se tiverem uma equipa de saúde que consiga olhar para a pessoa - é mais importante olhar para a pessoa do que olhar para a doença – e perceber de que forma a podemos ajudar a viver o tempo de vida que tem destinado da melhor maneira possível, as pessoas continuam a querer viver”, conta a enfermeira.
A proximidade da morte faz, em muitos casos, repensar a vida e refazer convicções. Susana Moutinho, psicóloga da unidade de paliativos do IPO do Porto, guarda um exemplo claro de um doente que acompanhou: “Era um doente que até fazia parte de uma comissão sobre eutanásia e ele, de facto, em fim de vida, queria viver. E disse-me que escreveu tantas coisas sobre esta temática, mas, confrontando-se com a realidade da sua vida e da morte, ele queria viver.”
Esta especialista em intervenção psicológica em fim de vida afirma que se trata de uma fase em que muitos doentes se reconciliam com a própria vida. “Os doentes falam muito sobre a morte, e a maior parte fala sobre o sofrimento. E o grande medo é o sofrimento. Mas, quando o sofrimento físico está colmatado ou minimizado, as pessoas têm uma melhor qualidade de vida, conseguem ter dignidade no fim de vida, conseguem resolver assuntos pendentes e dar sentido à sua vida. No fundo, deixar um legado, muitas vezes me falam sobre isso”, conta Susana Moutinho.
Esta ideia é também sublinhada pela enfermeira Margarida Alvarenga: os doentes "aprendem" que a vida tem um tempo e muitos querem respeitar esse tempo. “A última fase da vida é a última etapa do crescimento. E, muitas vezes, as pessoas, aqui, fazem coisas que achariam que tinham muito tempo para fazer, mas que, infelizmente, por estarem doentes, têm a noção de que esse grande tempo não existirá e fazem coisas que queriam muito fazer num espaço mais curto de vida”, conta.
E a esperança? Mesmo para quem está nesta fase da vida, é possível manter a esperança, afirma a psicóloga Susana Moutinho. “A esperança de um dia sem dores, a esperança de um dia em que vem a família que está em França vê-los”, exemplifica. Não é uma esperança,” irrealista”, sublinha a especialista, é uma esperança “realista”.
“É uma esperança para aquele dia. Houve pessoas aqui que, no fim de vida, se casaram, que fizeram o baptizado dos filhos, cumpriram objectivos de vida que são, nesta fase, mais difíceis de realizar, mas que foram realizados. As pessoas estão em fim de vida, mas estão vivas. As pessoas estão vivas até morrerem", relata.
Dar qualidade de vida, não prolongar a vida
Há estudos que comprovam que uma rede de cuidados paliativos sólida é decisiva: não para prolongar a vida, mas para dar uma melhor qualidade de vida. É também esta a tese defendida pelo director da unidade de cuidados paliativos do IPO do Porto, José Ferraz.
”O que já se verificou em estudos feitos é que a intervenção atempada dos cuidados paliativos tem um impacto grande no bem-estar das pessoas, mas também, sendo recurso antecipado numa fase mais precoce, as pessoas vivem mais e com tratamentos menos agressivos”, indica o médico.
José Ferraz aponta como fundamental permitir que os doentes “vivam o melhor possível no tempo que lhes resta de vida, seja lá esse tempo qual for”. É evidente que estes doentes têm uma doença grave, afirma José Ferraz, e “que nesta fase, o nosso objectivo não pode ser a cura da doença”, mas “há muito que ainda se pode fazer pelo bem-estar destas pessoas”, conclui.
A frase é batida, mas há lugares onde se aprende que vale a pena repeti-la: viver um dia de cada vez, viver o hoje, sublinha a enfermeira Margarida Alvarenga.
“Aprendemos a valorizar a vida, aprendemos a perceber que o nosso tempo não é eterno. E, quando consciencializamos que temos doentes, pessoas muitas vezes com a nossa idade ou, até, mais novas, cuja vida vai acabar, e a forma como eles lutam e vivem esses dias de vida, é um bom ensinamento para todos nós. Para relativizarmos muitas coisas que, às vezes, valorizamos em excesso e que, se calhar, não têm assim tanta importância como isso. Aprendemos a viver um dia de cada vez. O viver é hoje, não é amanhã, porque o amanhã pode não existir”, diz a enfermeira Alvarenga, há 22 anos nos cuidados paliativos do IPO do Porto, um espaço afastado do edifício principal, mais tranquilo, sem o movimento habitual de um hospital. São 40 camas, número insuficiente para as necessidades.