A minha conversão foi lenta; foi uma daquelas corridas em que os atletas torcem o pé em obstáculos, valetas, pés alheios. Um dos maiores obstáculos foi (continua a ser) o problema da teodiceia, a complicada relação entre a bondade de Deus e a maldade do mundo.
Como é que se articula a evidente imperfeição da cidade dos homens com a ideia de um Deus misericordioso? Ou seja, como é que Deus permite desgraças como a de Pedrógão Grande? Se Deus nos ama, porque é que permite que uma família de quatro morra sufocada e queimada num Renault ou num Opel numa estrada à vinda da praia? Como é que Deus permite uma aflição assim? Como é que Deus permite que um pai veja o seu bebé morrer queimado? Como é que Deus permite que o corpo de um bebé se funda com o alcatrão? Como? É o drama de Job e Eclesiastes, dois dos grandes romances da Bíblia.
Durante muito tempo, permaneci no cepticismo que descartava Deus. Numa fase inicial, triste e pessimista, tive sempre na cabeça uma passagem de um filme de terror de Roger Corman (The Masque of the Red Death) usada por uma banda gótica famosa nos anos 90 (Theatre of Tragedy). Diz assim o Príncipe Prospero (Vincent Price) à ingénua Francesca: “If you believe you are gullible. Can you look around this world and believe in the goodness of god who rules it? Famine, Pestilence, War, Disease and Death. They rule this world (...) No. If a god of love and life ever did exist, he is long dead. Someone... something rules in his place”.
Com o passar dos anos, e perante a evidência empírica que é a presença do mal neste mundo, o meu cepticismo manteve-se, embora tenha evoluído. Estacionou na sofisticação analítica de Hume. Ele, Deus, deseja evitar o mal, mas não é capaz? Então é impotente e não omnipresente. Ele é capaz, mas não quer? Então é masoquista e não misericordioso. É difícil não ver a lógica deste argumento perante uma tragédia como Pedrógão.
Mas onde está a falha de Hume? Ela existe e descobri-la foi uma das chaves da minha conversão. A falha deste cepticismo está na liberdade. Hume labora ali apenas com duas variáveis (bem e mal) quase abstractas; o bem e o mal surgem como dois titãs que lutam entre si na atmosfera celestial; os homens são meros títeres sem autonomia. Ora, o amor de Deus mostra-se na forma como nos cria livres, para sermos livres, autónomos, com o livre arbítrio necessário para escolhermos (ou não) os seus ensinamentos presentes na história da Revelação. A partir do momento da criação, nós ficamos em liberdade, temos de agir sozinhos. Nós criamos os nossos filhos para que eles sejam livres e independentes, não é? O nosso amor por eles não deseja que eles fiquem para sempre debaixo da nossa asa, pois não? Deus faz a mesma coisa. Sucede que a liberdade tem um lado negro, o mal enquanto escolha humana, quer pela acção, quer pela inacção. Santo Agostinho dizia que gostava de roubar, ele tinha gosto naquele mal, ele escolhia o mal livre e conscientemente, porque lhe sabia bem.
Mas porque é que Ele, o Senhor, não nos impede de escolher o mal num dado momento? Se impedisse essa escolha de forma taxativa, se funcionasse como uma espécie de polícia do mundo, Ele não seria Deus mas sim um tirano, e nós deixaríamos de ser livres, seríamos meros carrinhos telecomandados, perderíamos a sua maior oferenda: o livre arbítrio, a grandeza mas também a tragédia do livre arbítrio.
Portanto, a pergunta “como é que Deus permite isto?” é uma pergunta errada. A questão é: como é que nós permitimos que o país chegasse a este ponto? Como é que nós, enquanto comunidade política, não fizemos nada nos últimos 50 anos para responder ao êxodo rural que começou quando o meu pai migrou para a Ribeira de Frielas no meio das cheias de 67? No sábado, como é que tantas autoridades e organismos falharam de forma tão clamorosa? E, já agora, porque é que cada um de nós não perde um fim-de-semana por ano a limpar os terrenos do avô lá da terra?
A desgraça de Pedrógão tem culpados humanos, culpados portugueses. No domingo, não reze apenas pelas vítimas, reze também por si, meu caro leitor, porque o mal começa em si, em mim, em nós, na incúria que não nos deixa agir e na cobardia que não nos deixa perguntar.