O Governo nomeou há três anos um grupo de trabalho para perceber o que corre mal nos casos em que a violência doméstica acaba com a morte da vítima. No entanto, não só as suas recomendações não têm tido seguimento, como os juízes e os procuradores não lhe têm passado informação sobre os casos que decidem.
O cenário é traçado pelo procurador Rui do Carmo, que dirige a equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica. No programa da Renascença "Em Nome da Lei", Rui do Carmo revela que no último ano recebeu apenas “a comunicação de dois casos”, acabando por ser os membros da equipa a ter de investigar pelos seus próprios meios, sendo que todos estão em acumulação de funções e têm por isso pouca disponibilidade.
Rui do Carmo diz, por isso, que “é preciso haver mais colaboração entre as entidades envolvidas. E é preciso também ultrapassar muitas inércias do sistema”. O procurador que lidera esta equipa e dirigiu também a comissão contra a violência doméstica, que entretanto terminou o seu trabalho, denuncia que "há muito pouca proatividade na investigação destes crime” e, assim, o caso corre sempre o risco de morrer, com o silêncio da vítima.
Em 2018, cerca de 60% dos inquéritos relativos a violência doméstica acabaram arquivados. A desembargadora Maria Matos desconfia que, “pelo menos em alguns deles, na origem do arquivamento esteve a recusa da vítima em depor”. Maria Matos defende por isso "uma alteração no Código de Processo Penal de forma a que, quando a testemunha é a vítima de violência doméstica, não possa invocar a norma que lhe dá o direito a não testemunhar por ter uma relação de parentesco com o agressor”.
Maria Matos vê ”com tristeza e perplexidade” o facto de os juízes não darem informações sobre os seus processo de violência doméstica, como é seu dever. E diz que” é um sintoma de que não chega uma boa formação técnica em Direito. Há outras áreas do saber, como a sociologia e a psicologia, que são muito importantes para o juiz.”
O procurador Miguel Ângelo Carmo, que coordena o grupo de trabalho para a definição de uma estratégia contra violência doméstica, admite que o sistema não melhora com a rapidez que todos desejavam. Ainda assim, garante que há medidas já tomadas e outras em marcha, nomeadamente o tão falado manual de procedimentos para as polícias nas 72 horas a seguir à apresentação da denúncia por mau tratos, em contexto de violência doméstica que dará aos órgãos de polícia criminal instruções sobre como agir.
Enfermeira denuncia violência doméstica e é chamada à Ordem
Frederico Moiano Marques, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), lembra que as entidades que intervêm nas primeiras horas têm um papel decisivo no processo e refere que um dos pontos do percurso onde as coisas por vezes não correm bem é nos hospitais. O jurista dá um exemplo recente de uma vítima de violência doméstica que foi atendida numa hospital em Portugal . A enfermeira que estava de serviço contactou o serviço social do hospital que, por sua vez, a encaminhou para a APAV.
“A enfermeira foi chamada à Ordem”, conta Moianao Marques, ”por ter quebrado o segredo profissional. Este tipo de situações acontecem com frequência”.
O advogado da APAV conta ainda que “um aspeto sistematicamente ignorado pelos juízes e magistrados é o impacto psicológico da violência doméstica .O sistema só se preocupa e só recolhe prova relativamente às consequências físicas da agressão.”
O Orçamento do Estado de 2020 prevê uma verba de 20,3 milhões de euros para a violência doméstica. Marta Silva, da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, revela que “a verba será gasta nomeadamente no reforço dos meios de vigilância eletrónica e de teleassistência”.
O programa "Em Nome da Lei" é emitido na Renascença, aos sábados, a seguir ao meio-dia e, em repetição, à meia noite.