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O padre Albino Brás é missionário da Consolata e não esconde a admiração que sente por D. Óscar Romero. Até nasceram no mesmo dia, 15 de agosto, embora em anos diferentes. “Ele nasceu em 1917, o ano das aparições de Fátima, e num dia dedicado a nossa senhora”, diz, lembrando que o arcebispo de El Salvador era profundamente mariano.
O homem “corajoso e frontal”, que foi assassinado por ódio à fé quando celebrava missa, tem sido para si uma referência. Fala-nos das homílias dele que já leu, dos livros que tem e a que volta sempre que pode, porque são “inspiração” para sua vida missionária. E de como isso já o ajudou quando esteve em missão nas favelas do Brasil.
Albino Brás admite que foi uma “feliz coincidência” terem escolhido Óscar Romero para protetor anual da congregação dos missionários da Consolata este ano em que vai ser canonizado. E espera que isso contribua para ser mais conhecido, porque o considera “um Santo para os dias de hoje”, em quem toda a Igreja devia inspirar-se.
Os missionários da Consolata escolheram Óscar Romero para ser o protetor da Congregação neste ano 2018. Porquê?
Nós temos sempre um protetor anual, mas é interessante que quando a direção-geral da Consolata definiu que seria D. Óscar Romero este ano, ainda não se sabia que ia ser canonizado. Acabou por coincidir, e é uma coincidência feliz.
Já era uma referência para a vossa congregação?
É uma referência para todos os missionários. D. Óscar Romero tem muitos elementos que são de espiritualidade missionária, como a atenção aos pobres, uma espiritualidade centrada na Eucaristia, e da Eucaristia nasce a missão. É impressionante a sensibilidade que ele tinha para as questões da justiça, contra a opressão. De facto, nos três anos em que foi arcebispo de El Salvador, viveu de uma forma muito forte o embate, o diálogo mais que necessário entre o Evangelho e realidade. E foi incómodo. Foi tão incómodo que foi ameaçado de morte, e acabou assassinado pela Junta Militar que governava o país. Mas, como digo, ele tem muitos elementos que nos tocam, que são comuns a quem é missionário e a quem anda um pouco pelo mundo, a quem vive em situações de grande pobreza, às vezes de grande opressão e de grande injustiça também.
Tem sido uma influência para si, pessoalmente?
Eu tenho há muitos anos o livro das homílias de Óscar Romero, em espanhol, que sempre me inspirou muito. Trabalhei nas favelas do Rio de Janeiro, em situações também de grande violência e de grande injustiça. E a paixão com que ele viveu o Evangelho, toda a sua vida, tem muitos elementos que alimentam e inspiram a nossa espiritualidade e a nossa forma de fazer missão.
D. Óscar Romero foi beatificado como “mártir” da fé católica a 23 de maio de 2015. Ser agora proclamado Santo é particularmente importante para os missionários que estão em países conturbados política e socialmente?
Sem dúvida. Nós, da Consolata, não estamos em El Salvador, mas estamos em muitos outros países da América Latina, onde hoje continuamos a enfrentar situações semelhantes, muito parecidas a El Salvador nos anos 80. Às vezes com outra complexidade. Continuamos com regimes autoritários, e há outras formas de autoritarismo que também reprimem e oprimem a religião, às vezes de forma muito subtil.
De vez em quando chegam notícias de missionários e sacerdotes que são raptados, ou mesmo mortos.
Sim, continua a acontecer. É interessante vermos como D. Óscar Romero foi, podemos dizer, um bispo conservador, até um bocadinho doutrinário, mas ficou muito chocado com o assassinato do padre jesuíta Rutílio Grande, que era seu amigo, seu colaborador. Foi em 1977, três anos antes do assassinato dele, e foi aí que ele mudou completamente, começou a denunciar as injustiças, a opressão do povo. Porque houve muitos sacerdotes mortos nessa altura, e D. Óscar insurgiu-se sempre, denunciado quem o fazia.
E fazia isso de forma muito corajosa durante as celebrações.
Sim, e muitas das suas homílias foram transmitidas na rádio para todo o país. Ele juntou uma equipa de colaboradores que lhe trazia o nome de quem tinha sido assassinado naquela semana, quem tinha assassinado. Dizia tudo com nomes. Era uma voz incómoda. Os profetas são incómodos, isso é de sempre. Mas ele foi um profeta da não violência também.
Acabou por ser assassinado em 1980, quando celebrava missa.
Quando celebrava no centro hospitalar das irmãs Carmelitas Missionárias, onde ele vivia, de forma muito simples e humilde. Uma das suas homílias mais impressionantes foi a que fez na véspera de ser assassinado, porque ele fala um pouco de todos os seus grandes campos de luta e de batalha, parece que já estava a prever que poderia ser morto a qualquer momento. Foi como se quisesse deixar em herança as suas grandes convicções a partir do Evangelho, então falou da questão dos direitos humanos, do papel dos leigos, falou contra a opressão dos pobres, contra as injustiças, contra o Deus dinheiro, a idolatria, etc.
É interessante ver como há tantos pontos em comum, bastantes mesmo, entre Óscar Romero e o Papa Francisco. Não é apenas porque os dois sejam latino-americanos, mas têm muitas características semelhantes. Uma delas é a Igreja em saída, uma Igreja que vai para as periferias, que se preocupa e se ocupa com os pobres, que denuncia injustiças. O Papa Francisco, como temos visto nos últimos anos, tem feito denúncias muito fortes, não apenas para fora, mas também para dentro da Igreja. Nenhum dos dois foi teólogo de profissão, digamos assim, a sua teologia está nas suas homílias, na sua prática e no seu exemplo, no seu testemunho, dando credibilidade àquilo que proclamam. As homílias de D. Óscar Romero são um poço inesgotável de teologia pastoral, de espiritualidade. Eu convido e desafio todas as pessoas a lerem. Para mim é quase um livro de cabeceira, a que volto muitas vezes.
Vale a pena recordar aqui a homilia que fez na véspera de ser assassinado, que foi muito forte e profética. Ele afirmou: “tenho sido frequentemente ameaçado de morte. Devo dizer-lhes que como cristão não creio na morte sem ressurreição. Se me matam, ressuscitarei no meu povo salvadorenho. Como pastor, estou obrigado a dar a vida por quem amo, que são todos os salvadorenhos, como também aqueles que vão me matar. Se chegarem a cumprir as ameaças, desde agora ofereço a Deus o meu sangue, pela redenção e ressurreição de El Salvador". Ou seja, deixou como herança a entrega da sua vida, à semelhança do que fez Cristo.
Não é um modelo de santidade inatingível para os dias de hoje?
De maneira nenhuma, não é inatingível. Eu acho que para toda a Igreja ele deve ser mesmo inspiração, porque na Igreja podíamos fazer muito mais. Falta-nos em muitas situações e aspetos esta dimensão profética que estava claramente presente na figura de D. Óscar Romero. É um Santo para os dias de hoje, claramente, e não tenho a menor dúvida de que ele hoje estaria a denunciar situações análogas às situações que denunciou no seu tempo. Estaria também com o Papa Francisco a falar da economia que mata, da xenofobia, da recusa de acolher os imigrantes e os refugiados, do neoliberalismo que exclui os mais pobres, do tráfico humano. Estaria a falar de todas essas coisas.
A sua canonização, tal como a de Paulo VI, está marcada para domingo, numa altura em que decorre no Vaticano um Sínodo dos Bispos dedicado aos jovens. Um e outro são modelos de Santos a que os jovens devem prestar atenção?
É interessante que tenha feito essa ligação. Já era interessante Óscar Romero ser canonizado na mesma celebração de Paulo VI, porque foi ele como Papa que o nomeou arcebispo de São Salvador. Mas os jovens de hoje precisam de referências, e de referências que de facto sejam orientadores e inspiradoras. Estas são duas delas.
Ser declarado Santo significa que vai ser venerado mundialmente, e isso vai permitir que seja dado a conhecer a mais gente, em todo o mundo. Porque Óscar Romero é pouco conhecido fora da América Latina, e é uma pena.
Isso pode mudar agora?
Pode mudar e deve mudar, porque é de facto uma figura inspiradora. Falo por experiência própria, porque ele me tem acompanhado muito na minha espiritualidade, na minha forma de ver também a pastoral, a missão. Temos muito a aprender com D. Óscar Romero, esse dar voz aos sem voz, deixar-se instruir pelos pobres, esse querer ‘empoderar’ os pobres. Porque ele não trabalhou para os pobres, ele trabalhou com os pobres, o que é uma pedagogia, uma forma totalmente diferente de fazer pastoral. Ele não esteve lá no seu púlpito a falar para outros, ele falou com outros, e ajudou outros a falar e a fazerem-se ouvir, isso é uma mudança tremenda. Nesse aspeto temos muitíssimo a aprender com D. Óscar Romero. Toda a Igreja, desde o cardeal, o bispo, até ao catequista.