"Rampa deslizante" na despenalização da eutanásia. Mito ou realidade?
14-02-2020 - 17:13
 • Filipe d'Avillez

As propostas que vão ser discutidas no dia 20 no Parlamento português parecem todas bastante restritivas, mas são quase indistinguíveis da primeira legislação aprovada na Bélgica, onde hoje a prática é mais abrangente do que inicialmente.

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Os opositores da eutanásia alertam frequentemente para o perigo de este ser apenas um primeiro passo rumo a uma inevitável liberalização. O termo inglês para esta evolução inevitável é “slippery slope” e foi adaptado em português a “rampa deslizante”.

Mas será verdade? O que nos diz o exemplo dos países onde a eutanásia e o suicídio assistido já foram legalizados? A realidade parece dar razão a quem teme o que o ex-primeiro-ministro da Austrália chamou “pressão irresistível para futura liberalização”.

Casos práticos

Não é preciso ir muito longe para encontrar casos práticos que comprovem a teoria da rampa deslizante. Basta ver que as primeiras leis na Bélgica e na Holanda usavam uma linguagem praticamente idêntica à dos projetos de lei que vão ser discutidos em Portugal a 20 de fevereiro. A eutanásia seria legalizada apenas para maiores de idade, manifestando sofrimento físico ou mental incomportável, resultante de uma condição incurável causada por doença ou acidente.

Contudo, a realidade hoje é que ambos os países permitem eutanásia para crianças, a partir dos 12 anos na Holanda e sem limite mínimo de idade na Bélgica. Para além disso, são muitos os casos de eutanásia praticada em adultos sem o seu consentimento e a pedido de familiares, segundo o especialista John Keown, autor do livro “Euthanasia, Ethics and Public Policy”.

Em ambos os países existem comissões que devem rever cada caso, para garantir que cumpriu rigorosamente a lei, mas estudos revelam que milhares de casos nunca chegam a essas comissões e o historial aponta que mesmo em casos polémicos, como o de uma idosa demente que teve de ser amarrada pelos seus familiares para que a médica lhe conseguisse administrar uma injeção letal, a comissão não sancionou os responsáveis.

A situação já levou alguns defensores da eutanásia a mudarem de opinião. É o caso de Theo Boer, um especialista em bioética que era membro de uma das comissões responsáveis por rever os casos. Boer acreditava que o sistema holandês era robusto e humano, mas diz que a partir de 2007, apenas cinco anos depois da legalização explícita da eutanásia (que na prática já era tolerada desde os anos 1980 no país), o ritmo de casos começou a acelerar nos primeiros anos, aumentando 15% a cada ano.

“Hoje uma em cada 25 mortes na Holanda resulta de morte assistida. Para além destas mortes voluntárias há cerca de 300 não voluntárias todos os anos (em que o doente é considerado incompetente). Estes são casos de morte ilegal, extraídos de inquéritos anónimos feitos a médicos, e que por isso são quase impossíveis de levar à Justiça”, escreveu Boer em 2016.

Mais, acrescentou, “ao contrário do que muitos afirmam, a lei holandesa não diminuiu o número de suicídios; pelo contrário, estes subiram 35% ao longo dos últimos seis anos”.

O que Boer conclui é que se chegou a uma normalização social da eutanásia, o que por sua vez faz com que mesmo os abusos da lei, que já por si é entendida de forma bastante flexível, sejam tolerados oficialmente.

Do outro lado do Atlântico

Nos EUA a realidade não é muito mais animadora. No Oregon, o primeiro de seis estados norte-americanos onde o suicídio assistido é legal – mas não a eutanásia – os dados mais recentes e oficiais mostram que o número de pessoas que o requer não parou de subir.

Na primeira década desde a sua legalização, entre 1998 e 2008, menos de 50 pessoas utilizaram o suicídio assistido por ano, mas nos anos seguintes os números dispararam e, em 2018, o último ano para o qual existem dados oficiais, atingiram os 169 casos confirmados, sendo que um sobreviveu e veio a morrer de outras causas e que há ainda 48 casos cuja conclusão não tinha ainda sido apurada aquando da publicação dos dados.

A par disto, há as razões invocadas pelos pacientes. “Tal como em anos anteriores, as três razões mais reportadas para pôr fim à vida foram perda de autonomia (91,7%), diminuição de capacidade de participar em atividades que tornam a vida aprazível (90,5%) e perda de dignidade (66,7%).”

Isto significa que a "dor incomportável", razão principal invocada pelos defensores da eutanásia e suicídio assistido e citado como requisito em todas as propostas de lei em Portugal, não consta sequer das três principais razões invocadas pelos doentes de Oregon para porem fim à sua vida.

É neste contexto que a Holanda está agora a discutir a legalização da eutanásia para idosos que, não tendo qualquer doença ou queixa física, estão simplesmente “cansados de viver”. A proposta é da autoria do partido D66, que faz parte da coligação que atualmente governa o país – o mesmo partido que apresentou o projeto-lei que veio descriminalizar a eutanásia na Holanda em 2002.

Por fim, as estatísticas são claras. Na Holanda o número de casos de eutanásia aumentou todos os anos desde 2002, exceto em 2018, quando se registou uma descida. Em 2019 os dados apontam novamente para uma subida. Já na Bélgica, os casos de eutanásia duplicaram entre 2010 e 2016.

Razões teóricas

A realidade da rampa deslizante é aparente quando se olha para o terreno, mas os críticos da eutanásia afirmam que ela é inevitável também por razões teóricas, que derivam da própria lógica interna da defesa da eutanásia.

“Logicamente, os argumentos morais a favor de injeções letais para os doentes terminais são também argumentos morais a favor de injeções letais para pacientes que sofrem de doenças crónicas, e por isso vão sofrer durante mais tempo”, escreve o eticista John Keown. Ou seja, se o sofrimento incomportável é razão para um doente terminal pôr fim à vida, por que não será para quem sofre de uma doença que sendo crónica não é letal e, por isso, a fará sofrer durante mais tempo?

“Mais, o argumento moral para se dar injeções letais a pessoas competentes funciona também para doentes incompetentes, tais como bebés: a falta de autonomia do paciente não anula o dever de beneficência do médico", conclui. "Se o sofrimento de doentes competentes prova que ‘era melhor que estivessem mortos’, o mesmo se aplica aos que não têm competência para decidir sozinhos.”

Um outro argumento: se o Estado reconhece que as pessoas têm direito a dispor da sua própria vida, com que lógica é que o mesmo Estado se arroga ao direito de impor limites e critérios ao exercício dessa liberdade? Seria o mesmo que reconhecer que existem direitos que assistem apenas a pessoas com doenças diagnosticadas. Por que não deixar morrer também as pessoas que simplesmente estão fartas de viver, como se discute agora na Holanda?

Há ainda o facto de todas as propostas de lei assentarem numa noção que é por definição subjetiva. Como é que uma lei define o “sofrimento incomportável”? Como é que se mede algo que varia de pessoa para pessoa, consoante a sua resistência à dor – sobretudo quando se alarga essa noção ao sofrimento psicológico, que é ainda mais subjetivo?

Também no reino do subjetivo, ganha importância o papel do médico que avalia cada caso, o que na prática tem levado ao surgimento de um grupo de médicos que se torna conhecido por exercer um critério mais largo em vários dos países onde a eutanásia e o suicídio assistido são legais. Três dos casos mais polémicos que houve na Holanda, incluindo a eutanásia de gémeos de 45 anos que descobriram que estavam a ficar cegos, têm em comum o facto de terem sido levados a cabo pelo mesmo médico: Wim Diestelmans.

No Oregon, um estudo do investigador Kenneth Stevens mostrou que, de 2001 a 2007, a maioria (61%) das prescrições letais foi receitada por uma minoria de médicos (20 em 109) e que 23% das prescrições do fármaco usado no suicídio assistido foram feitas por apenas três médicos.

Os cinco projetos de lei em Portugal vão ser discutidos no Parlamento no próximo dia 20 de fevereiro e prevê-se que sejam votados nesse mesmo dia. Dada a atual composição do Parlamento, prevê-se que pelo menos uma das propostas seja aprovada. A bola passará então para Marcelo Rebelo de Sousa; o Presidente da República poderá promulgar a lei, vetá-la ou enviá-la para o Tribunal Constitucional.

Esta é a segunda vez que se debate a eutanásia em Portugal em menos de dois anos. Em 2018, as quatro propostas de lei levadas a voto foram chumbadas.