Há 50 anos a missa deixava de ser celebrada em latim. "Deixava o povo de fora"
06-03-2015 - 17:56
 • Raul Santos

Paulo VI foi o primeiro Papa em muitos séculos a celebrar a eucaristia na língua local. No sábado, Francisco assinala a primeira missa em italiano. O padre Vasco Pinto de Magalhães diz que a Igreja ganhou com a mudança.

O Papa Francisco volta, no sábado, ao mesmo local onde Paulo VI se deslocou, há 50 anos, para celebrar a primeira missa em italiano. Há meio século, fazia-se história na igreja da paróquia romana de Todos os Santos: pela primeira vez em muitos séculos, um Papa celebrava a eucaristia em vernáculo (língua própria de cada país ou comunidade).

O uso do vernáculo em substituição do latim foi uma das determinações do Concílio Vaticano II, aquela que foi sentida como "a grande mudança", na opinião do padre Vasco Pinto de Magalhães. Em entrevista à Renascença, o responsável da congregação dos Jesuítas na Diocese do Porto defende que a Igreja ganhou muito com isso porque "a fé vem do ouvido".

Vasco Pinto de Magalhães lembra ainda que "o latim não é origem" e que os primitivos da Igreja falavam o seu vernáculo. "Não fazia sentido Jesus estar a falar uma língua que os seus contemporâneos não entendessem", afirma.

O uso do vernáculo na missa, em substituição do latim, foi, pelo menos para o católico comum e para a generalidade das pessoas, a principal mudança originada pelo Concílio Vaticano II?
Sim, no imediato, sim. Foi aquela que toda a gente sentiu como a grande mudança. A liturgia é mais vasta do que a missa, mas poder entender-se, poder comunicar, tem efeitos imediatos e é universal. Embora o concílio tenha tratado de muitas outras coisas, a verdade é que o documento sobre a liturgia foi o primeiro a sair dos trabalhos. Uma das linhas de actuação do concílio era regressar as fontes, recuperar os inícios da Igreja, e isso originou a determinação de se proceder a traduções que pudessem vir ser aprovadas. Em 1964, já havia textos aprovados pelo concílio nesse sentido.

A questão não foi pacífica entre os estudiosos do assunto, mas, independentemente disso, entre os fiéis e as pessoas comuns também houve quem estranhasse, quem reagisse negativamente?
Sim. Há sempre sensibilidades... As pessoas estavam habituadas ao latim, que podia dar um certo ar de coisa sagrada, mas é um falso sagrado, porque não se entende. Não é mística, é misticismo.

O latim tinha, a meu ver, duas vantagens e um grande defeito. Uma das vantagens era a da unidade e transversalidade, sobretudo no Ocidente. Como foi do Ocidente que partiram as missões, onde quer que estivéssemos entendíamos ou, pelo menos, percebíamos onde é que estávamos.

A segunda vantagem decorre de o latim ser uma língua muito rigorosa e, assim, mantinha-se coesão naquilo que se pretendia transmitir.

Mas o grande senão é, a meu ver, não se entender. "Liturgia" é uma palavra grega que significa "acção do povo". A missa em latim é a acção dos padres e dos ministros. O povo está ali a "ouvir missa", a maior parte das vezes sem entender. Nem sequer as leituras eram lidas em vernáculo, só a homilia.

Teologicamente, a tradução vem no sentido da inculturação, no sentido da encarnação. Não fazia sentido Jesus estar a falar uma língua que os seus contemporâneos não entendessem.

A Igreja ganhou com a mudança?
Completamente! Claro que tem que se ter sempre cuidado com as traduções, mas poder comunicar é central. O cristianismo é isto, é comunicação da fé. A fé vem do ouvido. Como se pode alimentar a fé se ela for uma coisa distante e misticista? E convém lembrar algo de que, por vezes, as pessoas também se esqueceram: o latim só entra na Igreja tardiamente. Os primitivos não falavam o latim. A própria Bíblia só é traduzida para latim no século IV, com São Jerónimo. Até aos séculos IV/V, não há traduções em latim e o latim só começa a ganhar corpo na Idade Média, com a reforma gregoriana, fixando-se com [o Concílio de] Trento.

Às vezes, há uma absolutização do tipo 'o latim é que é a origem'. Não, o latim não é a origem, é uma riqueza muito grande, que permitiu uma comunicação culta dentro da Igreja, mas deixava o povo de fora.