Na entrevista à Renascença que decorreu na sede do CES em Lisboa, Francisco Assis alerta que "num quadro de inflação há sempre que fazer sacrifícios" e pede ao primeiro-ministro que diga a verdade à população, referindo mesmo que "o Governo tem essa obrigação".
O aviso é, aliás, reforçado por Assis: "Qualquer tipo de discurso que teima em insistir em qualquer tentação ilusionista é um discurso absolutamente contraproducente".
Como é que classifica esta proposta de Orçamento do Estado? Excessivamente otimista, prudente, equilibrada?
É uma proposta prudente, o que é prudente é equilibrado. Esta proposta de orçamento não pode ser dissociada de vários contextos e é em função desses contextos que deve ser lida. Em primeiro lugar, de uma situação de grande imprevisibilidade no plano internacional, quer do ponto de vista político, quer do ponto de vista económico e financeiro.
Em segundo lugar, de um contexto já conhecido, de uma inflação expressiva que não sabemos verdadeiramente que pontos vai atingir e quão longa vai ser. Os economistas até há pouco tempo dividiam-se sobre saber se a inflação era ou não estrutural, se era ou não inevitável. A verdade é que a inflação chegou, tem valores bastante elevados e isso tem consequências do ponto de vista, desde logo de perda de rendimentos das pessoas.
Há um quadro marcado também por uma alteração da política monetária do Banco Central Europeu, que já era algo expectável, mas que se tem vindo a acelerar, precisamente devido ao fenómeno inflacionista e com o aumento das taxas de juro, com as consequências que temos.
Outro aspeto que nunca pode ser ignorado no âmbito da avaliação de um orçamento num país como Portugal é o elevado nível de endividamento, de endividamento público em primeiro lugar, e também do rendimento das famílias e das empresas, mas sobretudo do endividamento público. Um país com uma dívida pública muito elevada, como é o caso de Portugal, tem que aproveitar todas as ocasiões que se lhe deparem para garantir uma redução do peso da dívida no PIB. E esse esforço está claramente assumido. É um contexto complexo e difícil e muito exigente, é natural que tenha prevalecido uma preocupação de prudência.
O primeiro-ministro tem afastado um cenário de recessão. Vê alguma base que sustente esta posição ou é otimismo a mais?
A perspetiva de crescimento já é muito moderada no próximo ano. Estamos a falar de uma situação que é de tal maneira complexa, enigmática, imprevisível, que é muito difícil alguém fazer declarações absolutamente perentórias. Nas declarações do primeiro- ministro há também a vontade de contribuir para que não se se crie um ambiente negativo e depressivo na sociedade portuguesa e na economia portuguesa. Agora, se temos a certeza absoluta que isso possa vir a acontecer ou não, creio que ninguém tem. É evidente que se uma economia como a alemã entrar em recessão, e hoje os dados apontam nesse sentido, isso tem um fortíssimo impacto em toda a Europa, dado o peso que essa economia tem no contexto europeu.
É certo que nós estamos mais protegidos do que outros países, estamos mais longe do centro da crise, temos um grau de dependência energética menor em relação à Rússia. É desejável, naturalmente, que consigamos escapar a esta reação e tudo deve ser feito nesse sentido.
Neste cenário, antevê que um orçamento retificativo ou suplementar seja uma realidade a meio de 2023?
Tudo depende da evolução da situação, num quadro de imprevisibilidade total, creio que ninguém pode estar a dar garantias absolutas nesse domínio. O que é importante é projetar uma imagem de alguma tranquilidade e a ideia de que temos consciência das dificuldades e do que estamos a fazer para procurar minorar os seus efeitos junto dos diferentes segmentos da sociedade portuguesa, tendo naturalmente que ter particular atenção em relação a alguns. Por exemplo, na questão da inflação. É evidente que o Banco Central Europeu vai tomar medidas e já está a tomar medidas mais restritivas em matéria de política monetária. Isso tem consequências.
O que é importante é que essas consequências sejam minoradas, sobretudo nos setores mais débeis da sociedade portuguesa. Em alturas destas, há que ter uma particular atenção aos mais carenciados, aos mais desfavorecidos, aqueles que estão mais expostos à inflação.
É algo que não afeta da mesma maneira todas as pessoas, porque é muito diferente uma pessoa deixar de ter dinheiro para comprar bens essenciais, nomeadamente a alimentação, ou deixar de ter dinheiro para uma qualquer extravagância que queira fazer neste ou naquele domínio. Portanto, a inflação não afeta de facto, da mesma maneira todas as pessoas e é preciso uma concentração de apoios muito grande nos sectores mais carenciados da sociedade portuguesa.
Uma discriminação positiva?
Isso tem que haver, isso é inevitável e acho que essa tem que ser uma preocupação e está a ser uma preocupação de todos os governos europeus. Creio que também do Governo português. Mas se a situação evoluir num sentido ainda mais negativo, é óbvio que tem que haver uma maior concentração de apoios nesses setores.
Isso significa aumento de despesa e nessa sequência provavelmente um novo orçamento...
Se tiver que significar aumento de despesa, esse aumento de despesa deve ser dirigido fundamentalmente para esses setores. É preciso aqui também assumir um discurso rigoroso. Num quadro de inflação há sempre que fazer sacrifícios. Os governos têm a obrigação de expor com toda a clareza a situação aos seus concidadãos, de chamar a atenção para alguns sacrifícios que devam ser feitos e de os repartir de forma socialmente mais justa.
E, nesse sentido, têm que apoiar preferencialmente aqueles que são as vítimas maiores de uma situação dessa natureza. Agora, se isso significa uma necessidade a meio do ano ou em qualquer altura do ano de promover uma retificação orçamental, isso, creio que neste momento, em absoluto, ninguém está em condições de responder.
Só poderemos responder a isso se tivéssemos uma capacidade de antevisão mínima do que vai acontecer no próximo ano, em termos económicos e em termos financeiros. E neste momento isso é impossível. Como é que se lida bem com a incerteza? Não é promovendo um discurso que gera intranquilidade, mas é promovendo um discurso realista, um discurso rigoroso, chamando a atenção das pessoas para eventuais sacrifícios que tenhamos todos que fazer e ao mesmo tempo, lembrando que uma sociedade digna e justa é uma sociedade que, em momentos difíceis, está particularmente atenta às dificuldades dos mais carenciados.
O Governo tem de ter essa sensibilidade para comunicar isso à população?
O Governo tem obrigação de fazer isso. Todos os governos neste momento na Europa têm a obrigação de fazer isso. A primeira coisa é fazer uma descrição rigorosa e séria da realidade. Nós temos que saber lidar com as pessoas como adultos. No mundo ocidental existia uma certa tendência dos detentores do poder para infantilizar os cidadãos, para estabelecer uma relação com os cidadãos na base de uma certa infantilização dos mesmos e, às vezes, chegando aos limites da tentativa de cretinização dos cidadãos.
Isso é a pior maneira, porque isso é que depois dá origem ao crescimento de soluções extremistas. Tenham elas a expressão que tiverem. Os líderes que tiveram maior sucesso, nomeadamente na defesa e consolidação das democracias, foram aqueles que disseram a verdade aos seus povos e chamaram a atenção para os riscos, para as dificuldades, para os problemas, para os sacrifícios.
E, a partir daí conseguiram criar um ambiente de mobilização geral e nacional. As pessoas estiveram dispostas a fazer esses sacrifícios e a partilhar os sacrifícios e é isso que neste momento, também nesta fase que é difícil para toda a Europa e também para Portugal, nós temos que fazer. Portanto, qualquer tipo de discurso que se afaste da verdade, qualquer tipo de discurso que teima em insistir em qualquer tentação ilusionista é um discurso absolutamente contraproducente nesta fase da vida que estamos a atravessar, numa época de crise é um discurso particularmente perigoso.
Tem visto nesta maioria absoluta do Partido Socialista uma maioria realmente de diálogo, como o Primeiro-Ministro prometeu logo na noite eleitoral de janeiro?
Posso responder pelo que se passou aqui na concertação social. Embora eu pense que há muitas coisas a melhorar no processo de negociação social e de concertação social, a verdade é que se conseguiu alcançar um acordo de concertação social e penso que isso é positivo, porque desde logo projeta tranquilidade na sociedade portuguesa e há aqui um garante de alguma estabilidade, que evidentemente é um garante de estabilidade que não pode deixar de ser visto em função do quadro de grande incerteza que estamos a atravessar, portanto é um garante estabilidade relativo.
Houve uma preocupação quer da parte do Governo, quer da parte da generalidade dos parceiros sociais, no sentido de se empenharem conjuntamente para que se alcançassem alguns consensos em duas áreas que são muito importantes para o país.
Uma é a questão da competitividade, criar condições para que a nossa economia seja mais competitiva, para que aumente a produtividade da economia portuguesa, para que nós possamos ter a prazo uma perspetiva de crescimento económico muito melhor do que os níveis de crescimento que temos tido até aqui.
E, por outro lado, na questão dos rendimentos que tem sido uma preocupação central. Mas mesmo na questão dos rendimentos, quando falamos de percentagem de crescimento dos salários, uma coisa era falar de aplicar determinados valores ao período pré-inflação e os mesmos valores ao período pós-inflação. São coisas completamente diferentes e, portanto, provavelmente também aí haverá que admitir que, ao longo dos próximos anos, se a inflação de acordo com a evolução, a evolução do processo inflacionista, será preciso fazer algumas revisões.
Isto não significa, evidentemente, que o facto de se valorizar a concertação social se possa ter como contraponto uma desvalorização do Parlamento. Isso seria totalmente inaceitável. Sou presidente do CES, mas tenho a noção de que o centro da vida política em Portugal é o Parlamento e, portanto, é aí que se deve estabelecer também um esforço, não de consenso, mas um esforço de diálogo.
Tem visto esse diálogo existir agora?
Por exemplo, no caso do aeroporto [de Lisboa], um caso concreto em que parece haver uma vontade de diálogo de parte a parte, quer da parte do Primeiro-Ministro, quer da parte do líder do maior partido da oposição. E vamos ver como é que decorre agora a discussão do Orçamento do Estado. É talvez o momento do ano em que mais estaremos em melhores condições para avaliar se há ou não a disponibilidade da parte do Governo para acolher alguma sugestões das oposições, sem pôr em causa, naturalmente, aquilo que são os compromissos fundamentais do Governo, que não só têm legitimidade como tem a obrigação de cumprir com o programa que apresentou ao país e que foi o programa que foi sufragado pela maioria dos portugueses.
Veremos. O Governo tem uma legitimidade inquestionável porque está assente na maioria absoluta. Foi essa a vontade dos portugueses. Também não podemos ignorar esse facto. A partir daí vamos ver qual é essa disponibilidade para abertura. Passou muito pouco tempo, também.
Todos estes casos de incompatibilidades no Governo a envolver ministros prejudicam a ação e, sobretudo, a credibilidade das políticas do Governo de maioria absoluta, nomeadamente no Orçamento do Estado?
Há uma tendência, infelizmente, nas sociedades contemporâneas, nas democracias contemporâneas, para estarmos sempre a criar mais casos. Não me pronuncio sobre nenhum destes casos, não me quero meter nisto, não devo fazê-lo. Mas há uma tendência. Não é só em Portugal, é em todos os países da Europa e em todas as democracias em geral, para estar permanentemente a construir casos políticos Alguns terão um fundamento, grande parte deles não tem fundamento absolutamente nenhum.
Compete a quem governa não se deixar influenciar por essas situações e, sobretudo, quando há a convicção de que nenhum membro do Governo cometeu fosse o que fosse de ilegal. Isso não pode de forma alguma afetar a tranquilidade do Governo e não pode ter qualquer efeito na qualidade da ação governativa.
Aqui a tendência tem sido para se falar mais destes casos, por exemplo, do que a descodificação do Orçamento do Estado?
Mas isso é uma tendência geral, porque é mais simples falar disto do que falar de coisas mais complexas e mais difícil. Muitas vezes discutir uma proposta orçamental ou discutir a política externa, ou discutir a política de saúde ou discutir a política de educação. Acho que é mais difícil abordar esses temas do que entrarmos nesta discussão quase telenovelesca.
Não estou com isto a desvalorizar, porque se houver casos graves, evidentemente eles têm que ser devidamente tratados. Agora, não podemos é confundir as coisas e colocar tudo no mesmo plano. O primeiro-ministro já disse que confia plenamente nos seus ministros, que está absolutamente convencido que não há nenhuma situação de incompatibilidade. Portanto, sendo assim, não tem porque afetar a qualidade da ação governativa e muito menos a tranquilidade da ação do governo.
Quanto à realidade nacional, ela é o que é, mas isso também não é caso específico de Portugal, quem for a outro país verificará que também nesses países há uma certa tendência crescente para se discutirem esses temas em detrimento das grandes questões de fundo, cujo debate acaba por ser amplamente prejudicado.
Têm sido seis meses que não se viram nos seis anos anteriores de governação e de maioria relativa. Atribui algum significado a isso?
É provável que no período da maioria relativa, como havia um processo negocial constante com o PS e os outros partidos, isso atraísse mais a atenção da comunicação social, por exemplo, e que agora a atenção seja mais atraída para outras situações. Eu não me quero pronunciar muito sobre isso, mas se houver casos graves, o país tem meios para hoje para os tratar.
Confio nas instituições, no funcionamento das instituições do país, na sua generalidade. Se houver algum caso grave, haverá concerteza meios de tratar esse caso. Quando os casos não são graves, também já temos a experiência de que as coisas duram três, quatro dias e depois tendem a desaparecer do horizonte da discussão pública. E portanto, eu não daria uma excessiva importância aos assuntos.
E tem visto alguma diferença na relação do Presidente da República e a nova maioria absoluta do Partido Socialista. Está diferente?
Não tenho notado especiais diferenças. Creio que o Presidente da República sempre teve uma boa relação com o primeiro ministro e com o Governo, com uma relação institucionalmente correta e até no plano pessoal parece-me ser uma relação próxima.
A boa relação do Presidente da República com Luís Montenegro não muda um pouco o xadrez?
Não deve mudar e não tem que mudar. Nem ninguém tem essa expectativa. Aliás, o dr. Luís Montenegro foi o primeiro a dizer que também não tem esse tipo de expectativa. São funções diferentes. O dr. Montenegro tem hoje uma função importantíssima no país, que é a de construir uma alternativa sólida à atual maioria. O dr. António Costa tem uma função importantíssima que é governar o país num contexto muito difícil e o Presidente da República tem igualmente uma função difícil e exigente, que é a de ser um elemento de moderação na vida nacional. Cada um deles está plenamente ciente de quais são as suas funções. O que eu espero como cidadão é que todos eles as desempenhem bem, porque isso é bom para o país.