Em todo o mundo, os cristãos são a comunidade religiosa mais perseguida. É o que revela o relatório ‘Perseguidos e Esquecidos?’, da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que analisa a situação em 24 países onde a liberdade religiosa mais foi posta em causa nos dois últimos anos, entre outubro de 2020 e setembro de 2022.
O documento, apresentado pela AIS esta quarta-feira, em Londres, revela que em 75% dos países analisados a perseguição aos cristãos aumentou, com destaque para África, onde a situação se agravou em todos os países analisados, e há relatos e provas de violência genocida. É o caso da Nigéria.
Na Ásia aumentaram os casos de opressão dos cristãos. Segundo a AIS, a Coreia do Norte é o país onde se condiciona, de forma mais grave, a liberdade religiosa. Já no Médio Oriente luta-se pela sobrevivência e continuação da presença da comunidade cristã nos países que foram o berço do cristianismo.
Em diversos pontos do mundo, resume o relatório, “sacerdotes são mortos, fiéis são raptados, mulheres cristãs são violadas e forçadas a negar a sua fé, as igrejas são profanadas e as comunidades forçadas a fugir”.
Em África, há relatos de um genocídio ignorado
O extremismo islâmico é a grande ameaça por todo o continente africano, com relatos de perseguições, raptos, ataques e execuções em Moçambique, Mali, Níger, Sudão, Eritreia e Etiópia. Mas, o país em grande destaque no relatório da AIS é a Nigéria, onde atuam grupos como o Boko Haram. Pelo menos 7.600 cristãos foram mortos no país entre janeiro de 2021 e junho de 2022.
Um dos ataques mais violentos é relembrado no prefácio do relatório pelo padre Abayoni, vigário da igreja de São Francisco Xavier, em Owo, estado nigeriano de Ondo, que foi atacada no final da Missa de Pentecostes, a 5 de junho deste ano.
”Eu ainda estava a celebrar quando ouvi as explosões. Vi os meus paroquianos em pânico, a correr em várias direções”, conta, lembrando que “foi um ataque bem planeado, que durou cerca de 20 a 25 minutos”, executado por homens armados.
“Não sei quantos eram, alguns dizem seis, outros dizem quatro. Alguns dos atacantes disfarçaram-se de paroquianos e rezaram connosco durante a missa, sabendo que tinham a intenção de nos matar”, relata.
O massacre causou 40 mortos e dezenas de feridos graves, mas não sensibilizou a comunidade internacional como devia. “O mundo afastou-se da Nigéria. Está a acontecer um genocídio, mas ninguém se importa”, lamenta o padre Abayomi, que espera que o relatório da AIS ajude a combater a indiferença, porque “os cristãos são assassinados por toda a África, as suas igrejas atacadas e as suas aldeias arrasadas”, e a Igreja “precisa de pessoas que lhe deem voz” e mostrem o que está a acontecer.
O documento cita também o testemunho da irmã Glória Cecilia Narváez, que foi detida por radicais islâmicos no Mali. Mantida em cativeiro quatro anos e meio, a religiosa franciscana “foi repetidamente torturada, física e psicologicamente”. Depois de ter sido libertada, no final de 2021, contou que os seus raptores “ficavam furiosos quando rezava”.
Na Etiópia e Eritreia várias igrejas foram atacadas e o exército é acusado de estar a fazer uma “limpeza cultural” de “motivação étnica”. O relatório lembra o massacre de Aksum, na Eritreia, que em novembro de 2020 causou pelo menos 750 mortos.
Hostilidade crescente na Ásia
Neste continente, indica o relatório, o “autoritarismo de Estado tem sido o fator crítico”, restringindo, ou mesmo impedindo totalmente, “a possibilidade dos crentes praticarem livremente a sua fé”.
O documento fala do “aumento da opressão” contra os cristãos em Myanmar (antiga Birmânia), no Vietname e na China, mas sublinha que “o país onde se verifica, de forma mais grave, que a liberdade de consciência e de religião está a ser estrangulada é a Coreia do Norte”.
O “nacionalismo religioso” também tem tido um “papel significativo na repressão do cristianismo e de outras religiões minoritárias”, com destaque para a situação no Afeganistão, onde os Talibã impõem a “interpretação rígida” da Sharia (lei islâmica).
A situação é igualmente preocupante, a este nível, nas Maldivas, onde os cristãos vivem na clandestinidade e o uso de símbolos religiosos e da Bíblia “podem resultar em prisão”.
Na Índia houve mais de 800 ataques a cristãos, no período analisado. No Paquistão todos os não muçulmanos estão sujeitos ao “crescente risco de assédio, prisão e violência”, mas também a raptos e violações.
Os cristãos encontram-se em situação de grande vulnerabilidade: o documento da AIS revela que, em plena pandemia de Covid-19, as ONG islâmicas não ajudaram as restantes comunidades e ignoraram “as casas cristãs durante a distribuição de alimentos às famílias pobres”.
Médio Oriente: cristãos são cada vez menos
Em muitos locais desta região, os cristãos estão hoje “em pior situação do que durante a ocupação do Daesh”, revela a Fundação AIS. O berço do cristianismo está em “declínio acentuado”, sobretudo na Síria, onde “no intervalo de uma década” a comunidade cristã passou de 1,5 milhões (10% da população, em 2011), para 300 mil (2% da população).
No Líbano, a explosão em Beirute agravou a situação dos cristãos e muitos estão a emigrar, pondo em risco “a sobrevivência da comunidade a longo prazo”.
De todos os países analisados no Médio Oriente, o Iraque é o único que “apresentou melhorias”, devido ao programa de estabilização que permitiu a “reconstrução de aldeias e cidades cristãs, casas, escolas e igrejas”, também com a ajuda da AIS.
Muitos cristãos já regressaram ao país, mas a comunidade caiu para metade, depois da invasão pelos radicais do Estado Islâmico – passou de 300 mil para 150 mil. E ainda se sente a “ameaça dos grupos jihadistas”, o que faz com que, por todo o Médio Oriente, “a vontade de emigrar” seja “irresistível”.
“Tratados como cidadãos de segunda classe, discriminados na escola ou no trabalho, com salários baixos ou desempregados, muitos desejam procurar uma vida melhor fora do país”, refere a AIS.
A Fundação Ajuda à Igreja que Sofre conclui que “há ainda um longo caminho a percorrer” para assegurar e proteger a liberdade de culto aos cristãos e aos fiéis de outras minorias religiosas.
Parte do problema, lê-se no relatório, “é a perceção cultural equivocada” que existe no Ocidente, onde o “politicamente correto” leva a que se continue a negar que os cristãos são “a religião mais perseguida” no mundo.
O relatório ‘Perseguidos e Esquecidos?’ é elaborado de dois em dois anos pela AIS, uma fundação pontifícia que apoia os fiéis católicos e outros cristãos onde são “perseguidos, ameaçados ou têm necessidade pastoral”.
O documento foi apresentado esta quarta-feira, em Londres, no arranque de mais uma ‘Red Week’, ou ‘Semana Vermelha’, durante a qual diversas igrejas e monumentos em todo o mundo serão iluminados daquela cor, em forma de alerta.
Em 2021, a AIS apoiou mais de cinco mil projetos em mais de 130 países, graças a donativos privados. “Da construção de igrejas à distribuição de livros de catequese, até à ajuda de emergência”, são várias as iniciativas suportadas pela fundação, que há uma semana lançou a campanha de Natal, com o objetivo de apoiar a Síria e o Líbano.