Pode a justiça acabar a julgar-se a si própria na Operação Marquês?
24-03-2017 - 10:43
 • João Carlos Malta

Um inquérito pode acabar ou não com uma acusação. Um julgamento pode terminar ou não com uma condenação. É assim também no caso do processo que julga Sócrates?

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A Operação Marquês é um processo ímpar na justiça portuguesa. O impacto mediático, político e as implicações sociais que origina não se comparam a nenhum outro. No centro do processo, está um ex-primeiro-ministro, José Sócrates, a quem os últimos desenvolvimentos da investigação juntaram Ricardo Salgado, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro na qualidade de arguidos. Se o caso chegar a julgamento, será, de algum modo, um período da história de Portugal a sentar-se no banco dos réus.

Quando as expectativas criadas são tão altas e as repercussões do que acontecer tão elevadas, há o risco de que a justiça, além do processo, acabe por se a julgar a si mesma? E há ou não o perigo de que tudo o que não culmine numa acusação e numa condenação seja percepcionado como um falhanço do sistema?

O ex-director-geral da Polícia Judiciária e deputado do PSD Fernando Negrão começa por notar que o sistema judicial em Portugal não está habituado a processos desta magnitude - uma montanha de 91 volumes e 13,5 milhões de ficheiros. Para Negrão, este é “o teste da investigação dirigida pelo Ministério Público, na medida em que terá ou não capacidade para lidar com esta mediatização.”

Em segundo lugar, na opinião do jurista social-democrata, estará em causa “se tem ou não capacidade de produzir uma acusação sustentada, e se tiver, poderá ter pés para andar para ganhar em tribunal.”

O ex-inspector da PJ Carlos Anjos crê que este caso terá um impacto sistémico na justiça. “A imagem da sociedade vai depender do resultado final do processo. Se chegar ao fim com penas suspensas, o sentimento será o de que a montanha pariu um rato”, sublinha.

Acha, então, que só uma condenação poderá fazer com que a percepção social do trabalho da justiça seja positivo? “Sim. Quando vemos o número de milhões que circulam entre estas pessoas e as dificuldades que Portugal vive, percebemos os negócios estapafúrdios que foram feitos. E ou isto merece uma censura penal do sistema ou, então, as pessoas vão desacreditar-se da justiça, tal como já não acreditam nos políticos”, defende Anjos.

No julgamento é como na vida: “temos dúvidas”

O advogado Pragal Colaço não subscreve esta visão. Para ele apenas o desconhecimento de como funciona a justiça pode levar a um julgamento do sistema por causa deste caso.

O jurista começa por explicar que a não existência de prova no julgamento “não quer dizer que as coisas não se passaram”, tal como, se se fizer prova, “não quer dizer que elas se tenham passado”.

“Mas isso são os ossos do sistema. Nas nossas vidas pessoais temos sempre dúvidas sobre determinadas situações”, salvaguarda.

Pragal Colaço defende que se a opinião pública vai, de alguma forma, pôr em tribunal o sistema judicial, além do próprio processo, isso é “um problema de funcionamento de uma sociedade e das pessoas que não compreendem o que estão a fazer”. No entanto, se houver uma absolvição, este jurista não ficaria admirado que “houvesse um julgamento popular do sistema judiciário".

A quem mais interessa que a justiça seja também julgada na Operação Marquês, na opinião deste advogado, é a defesa dos arguidos: “Essa será a melhor linha de defesa das pessoas que estão a ser julgadas. Uma pessoa que rouba um pão num supermercado não o pode fazer porque ninguém lhe liga nenhuma.”

“Mas as pessoas que são mediatizadas podem trazer o julgamento do sistema para o julgamento, e dessa forma defender-se do que podem ter cometido. Mas essa é a forma como as sociedades funcionam”, acrescenta.

Há mesmo duas possibilidades?

Para Fernando Negrão, é inegável que o caso pode abalar os alicerces da justiça em Portugal no caso de o processo não ter uma acusação.

“Haverá muitas perguntas porque o sistema ficará abalado. Se isso acontecer, o sistema teria de tirar consequências para aprender com os erros que terá cometido. Mas estamos longe de saber se vai ou não haver acusação”, relembra.

Carlos Anjos não partilha da ideia de que o Ministério Público esteja condenado a acusar. Defende que a acusação decorre dos indícios fortes que constam da investigação.

Mas, se isso não suceder, estar-se-á “perante um problema para o sistema, porque todos os que leram o processo, entre os quais vários juízes, dizem que há fortes indícios. O que iríamos dizer com isso é que estava tudo enganado. Mas essa é uma hipótese que não me cabe na cabeça nem a 0,01%”.

O antigo inspector da PJ não acredita que o sistema tenha de produzir uma condenação apenas para sobreviver. E dá os casos do Freeport e Portucale como exemplos de processos com figuras de proa da sociedade que não terminaram em acusação.

Na opinião do jurista e antigo ministro Fernando Negrão, este caso e outros que estão em investigação ou julgamento e envolvem figuras poderosas do sistema político-económico recente do país vão definir a ideia que os portugueses têm em relação ao sistema de justiça.

“Confirmará ou não a ideia, que não é de agora, de que há uma justiça para ricos e outra para os pobres. Isto é também um teste para a justiça”, remata.