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A permissão para a reabertura do Parque de Campismo Piedense, na Costa de Caparica, que deverá acontecer na próxima semana, foi das poucas boas notícias que Luís Gonçalves recebeu desde meados de março.
O presidente da Sociedade Filarmónica União Artística Piedense (SFUAP) confessa à Renascença que alimentava essa secreta esperança de, com o verão aí à porta, poder reabrir rapidamente o ‘camping’ localizado na Praia da Mata, uma das muitas facetas da coletividade. De todas, a que talvez maior projeção lhe tem dado é a banda filarmónica, que leva o nome da Cova da Piedade a todo o país e ao estrangeiro e que, por força da Covid-19, suspendeu toda a programação.
“A paragem não é benéfica para o desenvolvimento da banda, tendo em conta o seu prestígio e qualidade, mas até nem considero ser a situação mais preocupante”, diz Luís Gonçalves, mais inquietado com a impossibilidade de dar seguimento às atividades de ensino na área cultural, como são a própria música, a dança ou o ballet.
Não menos preocupante é o encerramento das piscinas, que tem afetado as aulas de natação e os treinos para competição. A Piedense tem duas equipas nos escalões nacionais; nadadores e treinadores esperam voltar aos treinos na próxima semana. Já o judo e a ginástica continuam parados.
Ao todo, Luís Gonçalves estima que a paralisação da SFUAP afete “entre cinco a sete mil pessoas”. O número é revelador da importância social da coletividade, cuja fundação, em 1889, assentou no espírito de classe e na necessidade de promover culturalmente os trabalhadores atraídos pela fábrica de moagem que o industrial moageiro Manuel José Gomes mandou construir, duas décadas antes, na zona ribeirinha da Mutela, em Almada.
Ao fim de 130 anos de existência, a Sociedade Filarmónica União Artística Piedense enfrenta um dos seus maiores desafios: recuperar da entropia e dos danos colaterais provocados pelo novo coronavírus.
Luís Gonçalves compara a SFUAP a “uma boa média empresa do concelho de Almada”, tendo em conta o número de associados e utentes que movimenta, o volume de negócios e o número de trabalhadores que emprega; ao todo, cerca de uma centena de funcionários e trabalhadores, a que acrescem alguns ocasionais.
Até ao momento, o “lay-off” foi evitado, no que o seu presidente classifica de “esforço significativo”. A atividade da SFUAP é suportada por um orçamento anual de dois milhões de euros. Os prejuízos financeiros não estão ainda quantificados na sua totalidade, mas serão de “uns bons milhares de euros”, diz Luís Gonçalves, que confessa ter pouca esperança de receber apoios para a retoma. “Pelo que se tem ouvido, não estamos com muita fé; as associações e as coletividades em geral têm estado a ficar para trás, pese embora o seu papel relevante ao nível da economia social”.
Uma escala menor, os mesmos problemas
Subimos 140 quilómetros no mapa das estradas de Portugal e vamos ao encontro da Associação Cultural e Recreativa da Comeira, às portas da Marinha Grande. Carlos Franco, é o presidente da coletividade que esta quarta-feira, via Skype, voltará a promover a “Poesia ao Serão’, uma atividade habitualmente realizada na sede, onde são lidos poemas e comentadas obras de determinados autores.
“No dia 6 de maio conseguimos ter 15 pessoas no Skype a falar de Vitorino Nemésio; a próxima será Fiama Hasse Pais Brandão”, revela o responsável da ACRC.
A coletividade tinha previsto inaugurar as obras da sede social no final de março. A Covid-19 obrigaria à suspensão dos trabalhos, bem como de todas as atividades no dia 12 de março. O bar foi o último a fechar, antes de Carlos Franco trancar a porta principal da associação, reaberta esta segunda-feira para que, “com as devidas cautelas, as pessoas possam voltar ao bar e começar a socializar-se, o que é muito importante”, diz à Renascença.
Com efeito, o pequeno bar da ACRC não é apenas uma “fonte de receitas importante para a associação”, mas também ponto de encontro e ‘barómetro’ do estado de espírito da população local.
Com a reabertura do bar, os associados da Comeira têm de novo onde partilhar desabafos e, porventura, lamentar a impossibilidade de ocuparem parte do seu tempo no ‘fitness’, na zumba, nas danças latinas ou nas classes ‘hip-hop’ frequentadas por duas dezenas de crianças.
“Temos também uma pequena secção de judo com 20 miúdos”, revela, orgulhoso, Carlos Franco, simultaneamente preocupado porque “há monitores que não têm qualquer outra fonte de receita”.
À preocupação com a subsistência dos colaboradores da ACRC, o dirigente associativo junta os pagamentos das obras na sede social. “Neste momento ainda não estamos em dificuldades financeiras, mas a breve prazo isso vai-se refletir, porque temos compromissos assumidos com o empreiteiro”.
Para ajudar a pagar as obras, Carlos Franco contava com as receitas geradas por várias atividades programadas para o exterior, entre junho e setembro e que, muito provavelmente não se irão realizar. “Já viu o que é estarmos a contratar bandas e a comprar frangos para assar, correndo o risco de nem sequer realizarmos receitas para pagar as despesas”, interroga-se Carlos Franco, notoriamente preocupado por duas razões: por um lado, a realização de quaisquer eventos do género permanece cancelada; por outro, subsiste a perplexidade sobre a forma como as pessoas irão reagir nos próximos meses, perante uma doença que envolve mais dúvidas do que certezas.
Uma ‘Casa do Povo’, sem povo para ter em casa
O cenário na Comeira não é muito diferente do que encontramos a meia dúzia de quilómetros de Felgueiras, na Casa do Povo da Longra, que tem no grupo de concertinas um bom exemplo de motivação dos mais jovens.
A Casa do Povo da Longra desenvolve um vasto leque de atividades lúdicas e culturais, disponíveis para crianças os 5 aos 16 anos, totalmente paradas devido à pandemia de Covid-19.
Na sede social funciona também um ‘centro sénior’ onde habitualmente param duas dezenas de idosos, que perderam esse espaço de convívio, estando agora entregues à solidão nas suas casas. Aspetos que levam o presidente da associação, Adão Coelho, classificar a situação como “dramática”.
O dirigente refere-se nomeadamente aos “120 agentes culturais parados e sem saber nada sobre o futuro”, também aquele que é o seu desafio mais ambicioso - a remodelação da sede da coletividade, que completou 81 anos em abril. O projeto de arquitetura está pronto; a obra deverá rondar o meio milhão de euros e Adão Coelho confessa angústia pelos obstáculos que a ausência de iniciativas terá na angariação de receitas.
Não menos preocupantes são as despesas correntes que não param de chegar à caixa do correio da Casa do Povo da Longra e que a direção tem honrado deitando mão às poupanças ou, dito de outra forma “mexendo em dinheiro em que não deveria mexer”.
Três milhões de cidadãos afetados
São mais de 30 mil as coletividades disseminadas por todo o território nacional, cujo funcionamento está a ser duramente afetado pela Covid-19, primeiro pelos sucessivos estados de estado de emergência e, agora, pelo estado de calamidade, que continua a manter as associações de cultura, recreio e desporto, amarradas a um vasto conjunto de restrições que, na prática, as impede de funcionar.
O impacto económico e social é devastador. “Estimamos que, só neste período, cerca de 3 milhões de pessoas tenham ficado privadas de atividade”, revela à Renascença Augusto Flor, presidente da Confederação Portuguesa das Coletividades de Cultura, Recreio e Desporto (CPCCRD).
“As pressões maiores que temos sentido a nível nacional e que nos chegam de colegas de todo o país, são das pessoas que estavam habituadas a ir à coletividade, a diferentes horas do dia, para ver televisão, estar com os colegas e amigos. Muitas dessas pessoas andam completamente desesperadas e chegam a ir à porta das coletividades, perguntar duas e três vezes pela reabertura”, diz o dirigente.
Em todo o país, só neste período de dois meses e picos, mais de 120 mil atividades foram suspensas, adiadas ou mesmo anuladas. Augusto Flor estima que haja cerca de 30 mil assembleias gerais por realizar, reuniões destinadas a votar contas ou mesmo a eleger órgãos sociais e que “são de extrema importância para o funcionamento democrático destas instituições”.
Há coletividades que podem não reabrir
No inquérito que a CPCCRD dirigiu às coletividades, no qual os dirigentes associativos foram questionados sobre a forma como têm suportado as despesas, sem receitas, as respostas foram elucidativas – ou as coletividades simplesmente deixaram de pagar e estão a acumular dívidas para resolver mais tarde, ou o ‘pé-de-meia’ reservado para as obras foi vocacionado para satisfazer compromissos imediatos e as obras ficaram por fazer.
Estas associações estão a passar por sérias dificuldades “tal como as pessoas, as famílias e as empresas; uma situação destas pode ter sido fatal, sublinha Augusto Flor, receoso de “que haja coletividades que não consigam reabrir”.
O dirigente faz ainda notar que se trata de associações cujos dirigentes não são remunerados, sendo possível que para “alguns deles, já cansados com inúmeras exigências e problemas que vinham detrás, esta seja a ‘gota de água’ que justifica o encerramento”.
O “mundo desconhecido” da prevenção social, perturbado pela ausência de receitas
Todo este movimento associativo, que representa cerca de metade do universo da chamada economia social tem uma caraterística muito própria que é a “prevenção social”, atuando como elemento estabilizador das dinâmicas sociais.
Augusto Flor sublinha que tem falado nesta questão várias vezes. “Até com o primeiro-ministro isto já foi discutido; é evidente que estão sempre de acordo, mas o modelo continua a ser o mesmo”, desabafa, fazendo notar que “há um grande investimento destas entidades privadas, sem fins lucrativos, que de forma geral substituem o estado ou o complementam em muita coisa”.
As necessidades financeiras para o funcionamento das associações de cultura, desporto e recreio “podem variar entre 350 euros e 80 mil euros por mês”, explica o presidente da CPCCRD, porque, esclarece “há coletividades que não têm qualquer trabalhador, não têm quadro de pessoal, havendo outras que chegam a ter mais de 130 trabalhadores a seu cargo, entre pessoal do quadro, prestadores de serviço e colaboradores”, naquilo que Augusto Flor considera ser “um mundo desconhecido”.
Os problemas financeiros e de tesouraria “vão continuar a colocar-se” ainda que as coletividades reabram porque, acentua “este é um setor que vive muita da relação direta entre as receitas e as despesas”.
O que propõem as coletividades
No essencial, a CPCCRD situa em dois planos as propostas de auxílio financeiro para a retoma de atividade pelas coletividades - o Estado e as autarquias. O apelo aos municípios tem tudo a ver com a relação muito próxima entre o poder local e o movimento associativo, traduzida em protocolos ou em contratos-programa anuais, habitualmente pagos em duas ou três vezes ao longo do ano.
Aos municípios é pedido um “apoio extraordinário” para além destas verbas, uma vez que a atual situação é também ela extraordinária. A segunda medida vai no sentido da “antecipação dos pagamentos previstos nos protocolos e contratos-programa”. Defende a CPCCRD que este apoio extraordinário - que no imediato será suportado pelas autarquias - seja reposto mais tarde nos cofres municipais através do Orçamento Geral do Estado. Estas medidas seriam destinadas essencialmente a coletividades de pequena e média dimensão, para as quais algumas centenas ou milhares de euros por mês podem fazer a diferença entre a sobrevivência e a falência.
Mas há também as grandes coletividades que, para “arrancar, podem necessitar de 80 mil euros ou mais”, esclarece Augusto Flor. Para essas, é proposto ao Governo que o Estado seja o avalista de contratos de crédito com a banca, suportados pelas coletividades, mas “com os juros assumidos pelo Estado”.
O presidente da CPCCRD defende a necessidade de se ir para além da leitura imediatista, fazendo ver que “o Estado acabará por lucrar, até financeiramente”, na medida em que os impostos que as coletividades irão pagar (IRS, IRC e IVA), irão “compensar essa ajuda que lhes foi dada inicialmente”.
Ainda à espera de respostas
Numa nota enviada à comunicação social, a CPCCRD situa muito perto dos 400 milhões de euros o impacto negativo da COVID-19 neste setor da economia social. A nota é acompanhada das 13 medidas que a confederação pretende ver implementadas para fazer face aos 123 milhões de euros necessários ao arranque e recuperação das atividades associativas.
Uma primeira proposta, com um cunho mais generalista, já tinha sido enviada há mais de um mês (no dia 2 de abril) ao primeiro-ministro, que remeteu para a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social. Até hoje não houve qualquer resposta a essa carta, na qual também eram solicitados esclarecimentos sobre a aplicação do “lay-off” nas coletividades.
Augusto Flor espera que esta nova carta, também enviada ao Presidente da República e cuja receção foi acusada por todas as entidades “seja a segunda e a última”, porque nela estão contidas, de forma detalhada e planeada “todas as medidas tidas por necessárias” para a retoma da atividade pelas coletividades. A verdade, porém, é que “respostas concretas, ainda não houve”’, conclui.