​Pandemia é um “desafio para a criatividade dos crentes”, diz padre Tomáš Halík
09-03-2021 - 17:57
 • Maria João Costa

“O Tempo das Igrejas Vazias” é o livro do padre checo Tomáš Halík que reúne as homílias e reflexões que fez em tempo de pandemia, quando pregava numa igreja vazia, em Praga. Halík é um dos mais respeitados teólogos do século XXI.

Tomáš Halík teme que depois da pandemia haja crentes que não voltem às igrejas. O sacerdote checo, que está a lançar em Portugal o livro “O Tempo das Igrejas Vazias” (Paulinas Editora), considera que a pandemia traz “uma lição importante”. “Estamos todos num só barco”, lembra o também professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade Carolina de Praga.


Figura emblemática da chamada “Igreja do Silêncio”, Halík considera que o atual momento é um desafio e uma oportunidade para “procurarmos Deus em tudo”. Em entrevista à Renascença, o sacerdote - antigo conselheiro do presidente Václav Havel, e um dos assessores mais próximos do cardeal Tomášek - fala numa situação social “muito perigosa” face ao risco de pobreza e defende que além do apoio social, a Igreja deve também fazer acompanhamento “psicológico e espiritual”.

Questionado sobre a celebração das missas sem crentes, via internet, o teólogo, ordenado padre na clandestinidade, considera que devem ser a exceção, lembrando que “a presença real de Cristo na Eucaristia depende também da presença dos crentes”. Em tempo de Quaresma diz aos portugueses que, “depois destes tempos que vivemos, Cristo vai visitar-nos de forma diferente”.

Estamos na Quaresma, já passou um ano sobre a pandemia e em Portugal as igrejas continuam fechadas. Como é que os católicos devem viver este momento, neste contexto pandémico?

Os cristãos no Japão viveram centenas de anos sem igrejas e sem padres. Também nos países com regimes comunistas houve, há cerca de 20 anos, uma vivência de igreja muito restrita. Eu próprio tive de celebrar missa durante anos como padre clandestino em casas privadas. As igrejas estavam abertas, mas não era para todos. Já estamos habituados a estas situações fora do normal.

E como olha a atual situação?

Na situação que vivemos, talvez algumas pessoas para quem a ida à igreja ao domingo é apenas um hábito, possam sentir que também poderão viver sem a liturgia e os sacramentos. Talvez eles nunca voltem às igrejas. Isso aconteceu no meu país depois do primeiro confinamento. Mas para outros, será a oportunidade para analisarem a liturgia e verem a eucaristia de forma mais profunda. São como a casa em tempo de doença, ou a comida em tempo de fome. Para muitos será também a oportunidade para perceberem como são importantes a eucaristia e a liturgia nas suas vidas. Devemos ser criativos numa situação como esta e na nossa vida espiritual. Temos as escrituras sagradas e as orações.

No ano passado uma das imagens mais fortes foi a de o Papa Francisco na praça de São Pedro vazia. Como vê a forma com a Igreja se adaptou ao atual contexto?

Acho que a imagem do Papa Francisco na Praça de São Pedro vazia, foi um grande símbolo. Tal como foi simbólica a sua visita agora ao Iraque. Simboliza que estamos todos no mesmo barco. Pessoas de diferentes religiões e culturas vivem a mesma situação mundial. Se pergunta sobre a igreja, digo-lhe que não podemos falar de uma só igreja. Para algumas pessoas, nada aconteceu, continuam a levar a sua vida normal. Mas para outros foi um desafio e uma oportunidade para mostrarem solidariedade para com os doentes e a Humanidade. Acho que esta pandemia é uma lição importante. Estamos todos num só barco.

É uma oportunidade de a Igreja repensar a forma como chega às pessoas?

Absolutamente!

A casa de família tornou-se no último ano, o espaço de trabalho dos pais, a escola das crianças, mas também, em alguns casos a igreja, o local de culto da família. Que desafio é que isso representa para o futuro?

Acho que é uma oportunidade para partilharmos a nossa vida espiritual nas nossas famílias. Ouvi algumas famílias a dizerem que foi a primeira vez em que falaram sobre fé em família. Em muitas famílias cristãs, os pais e os filhos, ou marido e mulher não falam sobre a fé. Acho que é uma oportunidade para uma partilha muito franca sobre a nossa experiência de fé, mas também sobre as nossas dúvidas, problemas e perguntas. A família deve ser uma pequena igreja.

Acha que houve ganhos em termos espirituais?

Absolutamente! Todas as situações, são oportunidades e desafios. Claro que para algumas pessoas não aproveitam a oportunidade e não compreendem este sinal dos tempos, mas há também outras pessoas que são sensíveis e refletem sobre o que está a acontecer no nosso mundo, nos nossos corações. Penso que é um desafio procurarmos Deus em tudo.


Uma das perguntas que coloca no livro que agora está a lançar em Portugal e que passou pela mente de muitos e lhe coloco a si também é se “Esta pandemia foi um castigo de Deus?”

Não, acho que o nosso Deus, não é um Deus de vingança. Esta imagem de um Deus punitivo, que também está na Bíblia, foi muitas vezes mal utilizada como instrumento do ódio humano e do medo. Por exemplo, o Livro de Job que acho que é um dos livros mais profundos do Antigo Testamento, é um protesto contra este tipo de teologia. Acho que o mal de uma catástrofe natural é um mistério. Não devemos destruir esse mistério com as nossas respostas simples. Devemos procurar Deus no riso, na fé e na esperança. Acho que é nesses momentos que Deus aparece, na nossa fé, riso e esperança. Deus é o que é sagrado no nosso riso, portanto, acho que é uma grande oportunidade para muita gente encontrar Deus no riso e na solidariedade dos outros. Esta situação é uma espécie de revelação de Deus.

A Igreja e muitas das suas instituições têm prestado ajuda a muitos, que devido à pandemia, enfrentam agora a pobreza. Como avalia esta resposta social?

Estamos perante uma situação social muito perigosa para muita gente. É dever da Igreja e de os cristãos cuidarem dos pobres. Mas não há só a questão da pobreza, devemos também acompanhar as pessoas a nível psicológico e espiritual. Ajudar as pessoas a ultrapassarem esta experiência. Acompanhar as pessoas espiritualmente é por isso muito importante, mas claro que cuidar dessas pessoas faz parte do nosso testemunho como cristãos.

Há a nível mundial muitas assimetrias no mundo cristão. Já disse que para alguns, este será um momento de encontro espiritual, mas há riscos de outros crentes se perderem. A ligação com a religião está em perigo?

Acho que há um risco, mas como lhe disse as pessoas são diferentes. Para algumas pessoas será um argumento contra Deus, para outras é um convite, um desafio, para colocarem as questões importantes, para ir ao encontro de Deus. No nosso país, há agora muitos programas espirituais na internet, na rádio, etc. Têm qualidades muito diferentes, mas as pessoas estão interessadas. Eu próprio tenho a minha experiência. Estou a transmitir as minhas meditações todos os domingos na internet. Há milhares de pessoas a ouvirem. É muito mais do que aqueles que poderiam vir à igreja. Por isso, penso que nesta situação é muito importante esta divulgação espiritual. Espero que tal como no meu país, esteja a acontecer noutros países. Podem inspirar as pessoas e darem apoio espiritual.

E que tipo de apoio podem dar? Acha que substitui a experiência da assembleia, da igreja cheia, do encontro entre a comunidade católica?

Depende da qualidade destes programas, mas não penso que seja uma boa ideia transmitir a missa na televisão ou internet. Acho que deve ser uma exceção. A presença real de Cristo na eucaristia depende também da verdadeira presença dos crentes. Acho que podemos transmitir datas, informações via internet e dos média, transmitir as nossas preces, as nossas lições e guias para a reflexão, mas não podemos celebrar através da internet. Acho que é o momento de usarmos todos estes meios para partilhar ideias, dar as ferramentas para a reflexão pessoal, mas a nossa distância da eucaristia deve ser também uma espécie de solidariedade com algumas pessoas que não podem participar na comunidade da eucaristia. Acho que agora é o momento da solidariedade para com as pessoas que têm saudades da eucaristia, mas a igreja está de porta fechadas. Espero que depois deste período possamos ser mais abertos a convidar outras pessoas para a mesa de Cristo.

Continua a celebrar perante uma assembleia vazia ou em Praga as igrejas já voltaram a abrir?

Temos apenas alguns crentes, um número reduzido. Mas as igrejas não estão fechadas ou vazias. O número de crentes que é permitido nas igrejas é muito limitado. Eu celebro a missa todos os domingos para um número restrito de pessoas, mas muitos outros podem ouvir as minhas preces e reflexões. Acho que agora é uma experiência espiritual difícil, mas vamos ultrapassar isto.

Todos os problemas nas vidas pessoais, e também na vida da igreja são uma oportunidade para sermos criativos nas nossas vidas espirituais. Não é nada novo na vida da Igreja a nível mundial! Na Idade Média havia a situação em que a igreja era banida, foi uma luta. Não havia outra hipótese para os crentes, se não encontrarem outra forma de se ligar a Deus. Foi o tempo do misticismo para as comunidades espirituais, foi um impulso para as reformas - protestante e católica - e, também foi um tempo em que a instituição igreja estava em crise. Foi também um desafio para a criatividade dos crentes.

Como é que os portugueses devem viver este tempo de Páscoa, com as igrejas fechadas? Que mensagem lhes deixa?

Acho que devem refletir sobre a história da Páscoa. Há alguns momentos nas nossas vidas e na vida da Igreja que experienciamos o lado negro da sexta-feira santa, da solidão, a tristeza do Cristo Crucificado. Há momentos nas nossas vidas, na vida de igreja e da sociedade em que participamos neste choro por Jesus. Este choro não é uma expressão de perda, é uma oração, um questionamento. Deus responde-nos a esta tristeza. Ele ressuscitou Jesus. Acho que devemos viver esta experiência de tristeza, sofrimento da sexta-feira Santa através da luz da ressurreição. O Cristo ressuscitado, é um Cristo transformado. Acho que devemos procurar Cristo em diferentes formas. Cristo ressuscitado é diferente e surpreendente, e nem sempre, mesmo os que estão mais perto conseguem reconhecê-lo. Eu acho que depois destes tempos que vivemos, Cristo vai visitar-nos de forma diferente. Ele irá mostrar-nos as suas feridas e cicatrizes. O Cristo ressuscitado é o Cristo ferido e acho que é a mensagem para a Páscoa, especialmente para este tempo que vivemos.