É o grande desafio do governo e uma das principais interrogações da atualidade nacional, saber se o Orçamento do Estado para 2025 é aprovado pela Assembleia da República. Uma questão minimizada pela presidente do Conselho das Finanças Públicas, o organismo independente que analisa as contas do país.
Em entrevista à Renascença, Nazaré da Costa Cabral garante que “não é por falta de mecanismos legais que o Orçamento pode constituir um entrave à governação, se isso tiver de acontecer”. Ou seja, o país não vai parar se o Orçamento do Estado for chumbado.
Está instalado o receio de um país gerido por duodécimos, ou seja, com a despesa faseada e limitada mensalmente pelos valores aprovados no anterior exercício. Nazaré Cabral diz que este “regime transitório de execução orçamental” está a ser comentado “com alguma falta de propriedade, do ponto de vista técnico”.
Na prática, a Lei de Enquadramento Orçamental “até prevê exceções que dão muita flexibilidade no uso das dotações, ou seja, permitem exceções à própria utilização por duodécimos”. O que é que isto significa? Despesas como o pagamento de prestações sociais ou salários, “podem ser gastas ou realizadas para lá do duodécimo que lhes caberia”, para salvaguardar os direitos das pessoas.
A presidente do CFP acrescenta ainda que este regime transitório “quer evitar o vazio financeiro no Estado”, garantindo que não fica paralisado. Na eventualidade dos partidos não aprovarem o OE, o executivo de Luís Montenegro terá de avaliar se tem condições para governar em duodécimos.
“Não é por falta de mecanismos legais que o Orçamento pode constituir um entrave à governação, se isso tiver de acontecer.”
Nazaré Cabral evita o comentário político ao longo de toda a entrevista, mas diz que no último debate do Estado da Nação viu “uma certa contenção na forma como, apesar de tudo, a oposição trava o debate político com o governo”. Ainda assim, avisa que a atual situação exige “responsabilidade por parte de todos os atores políticos”, sobre as medidas apresentadas e na interação entre as diferentes forças partidárias.
Novas medidas com “impacto negativo” nas contas públicas
Para já o balanço deixa as contas em desequilíbrio. A economista dá como exemplo as propostas fiscais que têm sido apresentadas e que, “de um modo geral, têm um impacto que será negativo nas contas públicas, ou porque implicam aumento da despesa ou porque significam uma diminuição de receita”.
Nazaré Cabral lembra que estas alterações avançadas quer pelo governo, quer pela oposição, podem ser compensadas por outras que recuperem a receita. Mas, diz que não tem visto “a preocupação de apresentar medidas de compensação”, o que a deixa preocupada.
O aspeto positivo é o sinal que todos os partidos estão a dar à sociedade, ao apresentarem um vasto volume de medidas e iniciativas.
É a resposta dos agentes políticos à ameaça de “rutura social” que está instalada, após um longo período de sacrifícios para garantir o equilíbrio das contas, com prejuízo de áreas essenciais como a saúde, a educação ou a justiça.
“Não será fácil” fechar 2024 com um excedente orçamental
O Ministro das Finanças, Miranda Sarmento, já veio reafirmar que este ano o saldo das contas públicas será positivo (0,2%), apesar do défice registado nos primeiros três meses. A presidente do CFP diz à Renascença que “não é impossível, mas não vai ser fácil”.
Nazaré da Costa Cabral lembra que o governo assumiu a pasta com uma boa folga orçamental, acima do excedente de 1,2% registado no final de 2023. No entanto, dissipou-se entre as medidas apresentadas e as que estão já aprovadas para este ano.
Na mesma linha, está o objetivo de redução da dívida, que o executivo quer descer para cerca de 80% do PIB, até 2028. “Vai ser necessário um grande rigor na gestão das finanças públicas, é preciso não entrarmos em aventureirismos do ponto de vista financeiro e orçamental”, diz. “Se isso acontecer, exequível é, não é fácil” cumprir a meta para a dívida pública.
A presidente do CFP alerta ainda para a dificuldade em garantir a redução da despesa pública, em linha com o Tribunal de Contas, que em uma recente auditoria denunciou a ineficácia do sistema em vigor há mais de uma década.
Nazaré Cabral dá razão ao ministro das Finanças: IRS proposto pelo PS viola a norma-travão
Uma das medidas mais polémicas, do pacote aprovado pelos deputados à revelia do governo, é a descida do IRS. O parlamento chumbou as alterações apresentadas pelo executivo, em detrimento do projeto de lei do PS.
O governo continua a aguardar a decisão do Presidente da República, sobre se promulga ou veta o diploma, mas o ministro Miranda Sarmento insiste que “viola a norma-travão” e que vai conduzir ao desequilíbrio orçamental.
A Assembleia da República está impedida por lei de diminuir a receita ou aumentar a despesa orçamentada. Enquanto jurista, Nazaré Cabral diz que “defende essa apreciação” do ministro. “Tratando-se de uma proposta que envolve a diminuição de IRS, por si só, envolve diminuição de receita”, conclui.
Ainda em matéria fiscal, a presidente do Conselho das Finanças Públicas aplaude a decisão de Miranda Sarmento, de retirar o IRS e o IRC do Orçamento do Estado, de forma a evitar que estas medidas, que não geram consenso, impeçam a aprovação do OE.
No entanto, para Nazaré Cabral esta separação “já devia acontecer por regra”. Ou seja, “as matérias estruturais de natureza fiscal não devem ser decididas no Orçamento do Estado”.
A jurista e economista admite incluir no OE atualizações de taxas, por exemplo, mas “a partir do momento em que há uma decisão de política fiscal estrutural, por uma razão de dignidade democrática da própria matéria”, explica.
“As matérias fiscais são estruturantes e, portanto, quando são enxertadas no Orçamento do Estado, no meio daquela profusão, o debate fica diluído e elas perdem a sua dignidade. Em matéria fiscal isso não pode acontecer”, conclui.
Crescimento em 2024 pode ir até 1,8%
Nesta entrevista ao programa Dúvidas Públicas, Nazaré Cabral admite ainda que “o comportamento da economia está a correr bem”.
Na última projeção, em março, o Conselho das Finanças Públicas apontou para um crescimento de 1,6% este ano. Agora a presidente daquele organismo admite que “hoje, podíamos rever uma décima ou duas em alta”. Ou seja, para um crescimento até 1,8%, que fica abaixo dos 2% do Banco de Portugal, mas acima do valor orçamentado.
“Não podemos correr o risco de continuar a ser o destino, ainda que de luxo, dos turistas da Europa.”
Nazaré Cabral não comenta se o recente pacote das 60 medidas para o crescimento vai no bom sentido, mas avisa que “não podemos correr o risco de continuar a ser o destino, ainda que de luxo, dos turistas da Europa.”
“Temos que ser mais ambiciosos”, sublinha. “No quadro da nova política económica e industrial temos de estar nas cadeias de valor que estão a desenhar-se, no centro da inovação e da investigação científica”, diz Nazaré Cabral.
Apesar dos preços estarem em queda, ainda é possível um choque inflacionário” na energia
O contexto internacional exige prudência na descida dos juros, segundo Nazaré da Costa Cabral, que defende a decisão do Banco Central Europeu, que manteve esta quinta-feira as taxas diretoras inalteradas, depois do corte decidido no mês anterior.
“Perante os riscos ao nível internacional que ainda existem, é a decisão que se justifica”, garante.
Além disso, o Banco Central Europeu não deve demarcar-se com uma estratégia “brusca” da Reserva Federal norte-americana, que ainda não decidiu cortar os juros. Neste momento a expetativa do mercado é que as duas autoridades monetárias, BCE e FED, anunciem cortes nos juros em setembro.
A presidente do CFP destaca ainda a prioridade que Ursula Von der Leyen deu à habitação para o próximo mandato, na última quinta-feira, dia em que foi reeleita presidente da Comissão Europeia. A expectativa é que esta decisão se traduza em novo financiamento para a construção.
São excertos da entrevista ao programa Dúvidas Públicas, que pode ouvir a qualquer hora no site ou em podcast