As queixas de cidadãos que não puderam votar nas eleições presidenciais do último domingo, seja por estarem no estrangeiro ou confinados, levantaram de novo a discussão sobre a lei eleitoral e a forma de votar em Portugal. O reeleito Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não deixou o tema de fora do discurso de vitória, para o pôr na agenda política.
Olhando já para o horizonte das eleições autárquicas, que se realizarão entre setembro e outubro deste ano, o jurista e constitucionalista Bacelar Gouveia afirma que as pessoas estão cansadas de “discutirem questões do foro do sistema político e depois nunca se mudar”. “Há vários anos que estamos com pequenos projetos que não são aceites”, avança.
Para este especialista, chegou o momento de atuar e de rever a lei eleitoral, para que depois do Verão seja possível aos portugueses elegerem os autarcas para as juntas de freguesia e para as câmaras municipais através de diferentes formas de votação. Alargar as possibilidades de voto, será assim uma das formas de a abstenção não atingir valores de 60%, como na última eleição presidencial.
Para isso, Bacelar propõe três modalidades: o voto por correspondência, que implica uma revisão da lei eleitoral, mas não uma revisão constitucional. Acresce ainda o incremento do voto em mobilidade, se se mantiver o voto presencial, e o voto eletrónico.
No domingo, Marcelo Rebelo de Sousa não quis deixar cair o tema e abriu a porta a alterações na lei.
“[Precisamos de uma] revisão antes de novas eleições para ajustar a uma situação como a vivida, e para ultrapassar objeções ao voto postal e por correspondência que tanto prejudicaram votantes, em particular os nossos compatriotas pelo mundo. Insistirei para que seja acolhido“, declarou.
Nas eleições do último domingo houve um aumento do número de eleitores, para cerca de 10 milhões, nomeadamente devido ao recenseamento eleitoral automático dos emigrantes com cartão de cidadão válido, que decorre de uma mudança à lei feita em 2018. Em 2016, eram quase 230 mil os eleitores inscritos no estrangeiro, este ano esse número subiu para 1,4 milhões.
Carreiras a favor, Almeida Henriques contra
A mesma opinião tem o presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, para quem “devemos tentar aprender com as situações vividas” e estas presidenciais “vieram mostrar algumas fragilidades que a lei eleitoral tem”.
O autarca social-democrata pede a introdução do voto por correspondência, e que fosse rápido o suficiente para que a mudança ocorresse a tempo das próximas eleições. “Não devemos perder tempo, nem deixar ficar a discussão na espuma dos dias”.
Em relação ao voto antecipado, modalidade que já existe há algumas eleições, o autarca de Cascais quer que o mesmo seja alargado a dois dias.
Em relação a um possível adiamento das eleições autárquicas devido à pandemia, Carreiras não quer ouvir falar desse cenário. Mas alerta que a eleição deve ser feita o mais cedo possível, em setembro, porque “ainda estaremos no verão”.
“O que sabemos é que a pandemia é mais controlada no verão, e não no mês de outubro em que se pode agravar a situação pandémica”, avisa.
Em sentido contrário, Almeida Henriques, presidente da Câmara de Viseu, defende que o país não deve avançar para o voto eletrónico.
“Não estou muito certo de que estejamos num ponto em que o voto eletrónico possa defender o secretismo do voto, porque nunca sabemos quanto outras pessoas poderão influenciar quem o está a fazer à distância”, começa por dizer.
E, logo de seguida, acrescenta que o voto eletrónico não defende o “voto livre” e “não garante o sigilo”.O autarca viseense defende que a evolução deve ser no sentido da digitalização das mesas de voto e sublinha que o ato de votar deve estar dotado de um “certo cerimonial”.
Não adiar
Por fim, o jurista e constitucionalista Tiago Duarte interpretou as palavras do Presidente da República como a expressão de quem vai fazer todas as diligências junto da Assembleia da República para colmatar as debilidades do processo eleitoral que estas presidenciais colocaram a nu.
“Ele disse que ia mover os seus esforços, tentar sensibilizar, seja o Governo, os partidos, que é quem tem competência [nesta matéria]”, adianta.
Tiago Duarte diz que tudo em Portugal já foi modernizado, menos a forma como votamos. Por isso, o voto eletrónico deve ser introduzido no sistema o quanto antes, afirma.
Em relação ao adiamento de eleições, que tanto se discutiu nestas presidenciais, e com a imprevisibilidade da evolução da crise pandémica, mesmo com umas eleições ainda este ano, o jurista não defende alterações de calendário nas autárquicas. Até porque, como ficou demonstrado, essa solução obrigaria a uma revisão da Constituição.
“Adiamento? Uma coisa é adiar por uma semana, 15 dias, porque há um impedimento qualquer. Mas se tivermos de adiá-las, é para quando? Ficava o presidente em funções por um período indefinido? Quando seria uma boa altura para eleições?”, questiona.
“Depois, o verão não é bom porque as pessoas estão na praia, no inverno está a chover, no Natal as pessoas vão de férias, às tantas as eleições são quase vistas como um empecilho. Algo que nunca é bom”, sentencia.